quinta-feira, 18 de abril de 2024

Idalina Veríssimo traz Sebastião da Gama aos mais novos



Começa com dois versos do poema “Madrigal”, escrito em 7 de Outubro de 1946, e conclui com a primeira quintilha do poema “O Sonho”, redigido em 1 de Setembro de 1951. Entre os dois excertos, desenrola-se a história de Sebastião, o Menino que Nasceu Poeta, criada por Idalina Veríssimo e ilustrada por Cristina Arvana (edição da Junta de Freguesia de Azeitão), obra que visa apresentar o poeta aos mais novos quando passa o seu centenário.

Tudo se passa entre três personagens — a avó Idalina e os netos Alice e Afonso —, a que se associa a figura de Sebastião da Gama, que ganha vida a partir de uma escultura, numa criação onde o fantástico espreita: “A Alice, sempre muito irrequieta, quis logo mexer na boina do homem da estátua, que lhe sussurrou: ‘Está quieta, Alice! Estás a fazer-me cócegas!’ A princípio, a Alice pensou que o homem da boina era mágico, que tinha poderes. Nunca tinha ouvido uma estátua a falar!” A partir desta forma de meter conversa, a figura de Sebastião da Gama anima-se e serve de cicerone ao trio familiar, num percurso por Azeitão e Arrábida (Portinho e Convento) e pela sua biografia.

Tem, assim, o leitor a possibilidade de conhecer um quase-roteiro do poeta com início nas casas onde nasceu e onde passou a adolescência, com um olhar para a casa que era a da amiga e depois namorada, invocando o namoro “à janela”. Depois, é o caminho para a Arrábida, com a personagem a recordar que “conhecia todos os segredos da serra” e que transportava sempre consigo um “caderno, onde escrevia o que via e sentia”, em caminhadas que tinham a companhia da cadela Dina.

Perante a vista sobre o Sado, o poeta ensina as crianças, suas companheiras de percurso, a olharem o mar e as flores, numa atitude que também pretende ser pedagógica para os jovens leitores. É no Alto do Formosinho que surge o contacto mais sentido com a Natureza — o olhar para as cores do céu, do mar e da serra; o som das aves; o aroma proveniente das flores; o toque do ar inspirador —, ambiente propício à criação poética. A conversa ruma, depois, para a aprendizagem da identificação das plantas e para o relembrar do episódio do ramo de noiva feito com alecrim apanhado na serra que aconteceu no casamento de Sebastião com Joana.

Uma passagem rápida pelo Convento é o ponto que antecede a chegada dos quatro protagonistas ao Forte de Santa Maria, espaço histórico e local afectivo para o poeta, que explica também a razão de ser do título do seu primeiro livro, Serra-Mãe.

A caracterização do poeta vai ganhando alegria pela aproximação aos jovens que o acompanham, todos sorrindo para a vida e para o momento e tendo as crianças a oportunidade de perceber a necessidade do recolhimento e do silêncio como elementos importantes para o pensar e para a produção de um poema.

O final da história acontece com o regresso a Azeitão e com o retomar do tempo, momento em que Sebastião volta a ser estátua. Nas mentes de Afonso e de Alice fica a intensidade da experiência que ambos vão partilhar com a família e, no dia seguinte, na escola — e é o momento para o final: “A Alice e o Afonso gostaram muito de aprender a história a história deste poeta azeitonense e convidam-te a ti, aos teus amigos, aos teus pais e professores, a conhecerem quem foi Sebastião da Gama. Que nunca fique esquecido, nem a sua história de vida, nem a sua poesia, e muito menos o seu Amor à nossa Serra da Arrábida.”

Dar a conhecer a história local aos mais jovens tinha sido pretexto para outro livro de Idalina Veríssimo, Afonso à Descoberta de Azeitão, de 2015, aí aparecendo já a referência a Sebastião da Gama, mas de forma muito sumária. Com a obra agora publicada, enriquecida com finas cores e traços de aguarela, em retratos que bem captam a paisagem e os lugares, o público juvenil tem ao seu dispor a biografia da mais importante personalidade azeitonense ligada à cultura portuguesa, num relato leve e muito ligado à identidade local, que consegue também ensinar a olhar o mundo e a transformar a vida em motivo de poesia.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: nº 1283, 2024-04-18, pg. 10.

 

quinta-feira, 11 de abril de 2024

Azeitão nos poemas de Sebastião da Gama


 

Sebastião da Gama tinha o hábito de, no final de cada poema, localizar e datar o momento da sua escrita - em 695 poemas conhecidos (não considerando as 239 quadras), há 137 em que não surge a referência ao local de criação e 53 que não estão datados -, prática que parece associada à diarística, tanto mais que, em alguns casos, menciona o local quase exacto do sítio em que escreveu - uma larga maioria dos poemas surge a partir da “Arrábida” (aparecendo referências mais precisas a Alto da Mata, Convento, Lapa de Santa Margarida e Cruzeiro, Jardim de S. Pedro de Alcântara, Pocinho da Torre, Estelita, Olivalinho, Bom Jesus, Alpertuche), mas também os há produzidos em Lisboa, Parede, Azeitão, Paris, Estremoz, Coimbra, Ponte de Lima, Viana do Castelo, Castelo de Vide, mencionando uns poucos terem sido escritos “Algures” e outros durante um trajecto, como “de Cacilhas a Azeitão”, “em frente a Coimbra”, “comboio do Douro”, “entre Azeitão e Setúbal”, “trajecto Azeitão - Cacilhas”. Apenas um menciona o espaço caseiro - “nossa casa”, no poema “Largo do Espírito Santo, 2 - 2.º”, escrito em Estremoz, trazendo para título a morada onde Sebastião da Gama e a esposa, Joana Luísa da Gama, viviam.

Embora a Arrábida integre a freguesia de Azeitão, a verdade é que os dois espaços acabam por funcionar como comunidades próprias, tendo a ida do jovem poeta para a Arrábida por razões de saúde sido a responsável pela localização de escrita dos poemas maioritariamente no território arrábido, onde a família vivia. Azeitão, incluindo Vendas, Vila Nogueira e Aldeia Rica, são locais que aparecem como espaços de escrita de cerca de uma trintena de poemas, ainda que a temática ou as referências locais não perpassem por todos eles.

Entre as mais de duzentas quadras que Sebastião da Gama escreveu, há três que referem Azeitão - uma, dedicada à beleza das azeitonenses, “tão belas, tão airosas” que fazem “chorar ‘té as próprias rosas”; outra, dando a ideia de que a terra é um jardim, onde é “cada moçoila, uma flor”; finalmente, a terceira apela às jovens de S. Simão para terem cuidado com o seu coração. Estas quadras, enaltecendo a juventude, cruzam-se com os viras de Vila Nogueira e de S. Simão, datados de Dezembro de 1941 e de Março de 1942, respectivamente: no primeiro, são evocados os encontros de namorados junto da Fonte dos Pasmados, as promessas não cumpridas, as separações por ida do rapaz para a tropa ou por haver troca de par; no segundo, a pretexto de um casamento, há o repicar dos sinos e a garantia de fidelidade dada pelo Menino da Senhora da Saúde, cuja festa é desejada pelo ambiente festivo (missa, sermão, foguetes, procissão, vinho e arraial). A propósito do vinho, é comovente o soneto de Dezembro de 1942, que remata — aquando da distribuição de prendas pelo Menino Jesus —  elogiosamente para os néctares azeitonenses: antes de se retirar dali, depois de cumprida a sua tarefa, o Menino decide “pra Seu divino pai, mai-los anjinhos, / levar o saco cheio de bons vinhos / moscatéis lá das cepas de Azeitão.”

A dimensão da religiosidade torna-se evidente nas Loas a Nossa Senhora da Arrábida (1946), que acompanham a peregrinação desde Azeitão até ao Convento e volta, demonstrando as quadras desta composição a manifestação da fé dos devotos azeitonenses e narrando o contentamento do regresso, em comunhão com a imagem da Virgem a quem imploram protecção.

Prova do afecto a Azeitão é um poema que tem o nome da terra, constituído por quatro quadras, havendo a separar os versos a palavra “Azeitão”, quase como se de um eco se tratasse. “Terra santa ond’ eu nasci” é a primeira afirmação dedicada a Azeitão, nomeada “beleza sem igual” ou “brilhante refulgente”, havendo ainda espaço para a evocação do romance de Pedro e Inês e para afirmar o orgulho de, ali, ter visto o dia pela primeira vez, concluindo o poema com uma declaração de amor: “Só quem não te conhecer / Azeitão / não te ama, não t’ elogia.”

Não menos poética imagem é trazida pelo soneto “Lenda de Azeitão”, de Janeiro de 1942, em que o leitor contempla “a bela deusa Arrábida”, filha de Zeus, a mirar a luz do dia. Num momento de afago dos cabelos, algo acontece que a leva a gritar de aflição, “pois lhe caíra aos pés, tão linda, a Azeitão / - da sua cabeleira a jóia mais brilhante.” O recurso à mitologia para enaltecer a importância do local, usa-o também Sebastião da Gama para mostrar o Portinho da Arrábida, prenda que teria sido ofertada a Vénus, no seu aniversário, por seu pai, Jove, a conselho de Apolo. Mas o território da Arrábida, distinto do de Azeitão, é outro peculiar terreno do poeta no caminho da “Serra-Mãe”...

Vivendo na zona do Portinho, Sebastião da Gama exprimiu fortemente o seu apego a Azeitão, tomando como pretexto não só a beleza natural, mas também o facto de ali estar a sua raiz e de ali, como confessa no soneto escrito a propósito da escola primária, de Novembro de 1941, ter bebido “o leite do Saber”.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: nº 1277, 2024-04-10, pg. 7.


OBS.: Os poemas referidos ao longo do texto são, na sua maioria, inéditos. Serão brevemente publicados na obra O Inquieto Verbo do Mar, título que reúne a obra poética de Sebastião da Gama, incluindo a publicada em livro, 70 poemas dispersos e 290 poemas inéditos (Assírio & Alvim / Porto Editora).

 

quarta-feira, 3 de abril de 2024

Imagens contra a estupidez



Vinte anos depois de Maria Severa Onofriana, conhecida como “Severa”, ter falecido (quando contava 26 anos, em 1846), um autor dramático seu contemporâneo, Ernesto Biester (1829-1880), defendeu a opinião de produzir uma peça trazendo-a para protagonista. Se houve quem o apoiasse, também existiram aqueles que, à luz da moralidade pública, condenaram a ideia, argumentando, segundo Júlio de Sousa e Costa, que “pôr em cena a vida de uma mulher perdida chamaria o pecado sobre as cabeças do autor, actores, actrizes, ponto, espectadores, toda a gente, enfim, que fosse deliciar-se com as cenas copiadas da Mouraria...” Sousa e Costa relata este episódio na obra Severa, biografia publicada em 1936, rematando com o seguinte comentário: “Toda a vida há-de haver gente estúpida e é isso que faz com que o mundo se torne imensamente divertido.” A verdade foi que os tais defensores moralistas foram fortemente satirizados por causa desse “cuidado” moralista, o que justificou a observação de Sousa e Costa.

Mesmo retirando o comentário do contexto que o originou, o que nele é dito mantém a sua validade. Que o digam as cenas do quotidiano a que vamos assistindo, nos mais diversos circos e palanques, a exigirem que tenhamos nervos de aço ou a nossa gargalhada perante o ridículo... O aflitivo, no panorama, é que a estupidez se sabe afirmar sem nada recear, num jogo de palavras, num esgar de risos e de sobranceria, num gesticular e vociferar com desaforo, numa defesa de ideais em que não dá para acreditar - a geografia dos acontecimentos recentes, viremo-nos para ocidente ou para oriente ou comecemos aqui mais perto, torna evidente a pujança e a matreirice da estupidez.

Eugénio Lisboa, num texto inserido no livro Poemas em tempo de guerra suja (2022), retratou-a em grande tela: “A estupidez é a mercadoria / mais bem distribuída deste mundo: / ela veste-se de demagogia / ou do que quer que seja de imundo. // A estupidez é um grande muro, / que oferece ao inteligente / a resistência do escuro duro, / que se ergue forte e prepotente. // Ela exibe estrelas de general / e ri-se à grande dos que são sábios: / permite-se, à vontade, ser boçal, // saindo barbaridades dos seus lábios. / A estupidez sabe prevalecer / e sabe, sobretudo, não temer.”

E será sempre uma luta inglória o diálogo com a estupidez, mesmo que se invoque a competência democrática ou a pluralidade para tal, pois até valores como a vida parecem insignificantes perante a estupidez. Foi Ruben A. (1920-1975) quem o disse no terceiro volume de O mundo à minha procura (1968): “Para a estupidez, não há argumentos, por mais inteligente que seja o einstein. (...) Um ditado alemão define perfeitamente esta conjuntura: Contra a estupidez até os Deuses lutam em vão.” E, num outro passo da mesma obra, relacionou a estupidez com a tragédia: “Falar com um ser estúpido que tem opiniões, este é o drama da existência.”

Há aprendizagens que vamos fazendo nestes percalços que a vida proporciona, chegadas, muitas vezes, depois de percursos longos. Uma das primeiras coisas que ouvi de um amigo de longa data, bem mais velho do que eu, foi a recomendação de não contra-argumentar com a estupidez, porque, no final, é ela quem ganha, não por mérito do que apresenta, mas por sabotagem da realidade, recurso ilusório e atraente para incautos. Numa crónica incluída na obra O país do solidó (2021), J. Rentes de Carvalho, um pensador crítico dos quotidianos, deixa o aviso: “A estupidez é contagiosa e demasiadas vezes é ela quem vence.”

E a conclusão torna-se óbvia: porque não investem os cientistas numa vacina contra a estupidez? O mundo e a vida seriam mais fáceis, mais felizes, menos enganadores, mais de todos.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: nº 1272, 2024-04-03, pg. 10.


quarta-feira, 27 de março de 2024

Motorizações nos barcos sesimbrenses lembradas por João Aldeia



“Para além da materialidade das embarcações, das velas, dos apetrechos de pesca, dos motores, das sondas e radiotelefones, o património cultural marítimo é constituído pelo modo como se utilizavam esses equipamentos: como se velejava, como se remava, como se pescava, e ainda pelos saberes, crenças, rituais, tragédias, humor, etc.” Esta afirmação, justifica-a João Augusto Aldeia com a necessidade da criação de um Museu Imaterial do Mar de Sesimbra, projecto para o qual o seu livro Primeiras motorizações de embarcações de pesca de Sesimbra (1926-1932) (ed. Autor), há dias apresentado, é um digno contributo, resultante de passeio aturado pelos arquivos sobre as embarcações e de testemunhos recolhidos na memória daqueles que, directa ou indirectamente, participaram na faina sesimbrense.

Sesimbra é uma das terras que integram um roteiro camoniano feito a partir d’ Os Lusíadas, obra que a menciona no momento em que, no canto III, Vasco da Gama conta a história de Portugal ao rei melindano, evocando as conquistas de Afonso Henriques e referindo-se à “piscosa Sesimbra”. Essa adjectivação, resultante da abundância de peixe, foi o marco de um percurso que, no século XX, encontrou o revés, levando o pescador local a reinventar a profissão até aos limites do possível, ao mesmo tempo que se gera a ideia de em Sesimbra existir um dos maiores portos de Portugal - criticamente, anota João Aldeia: “pode ser que o seja estatisticamente, mas não é com o peixe das suas águas nem com a qualidade que outrora lhe deu prestígio.”

Mesmo por estas contingências que o passar dos tempos trouxe, vale a pena organizar a memória, falando dos marítimos, dos carpinteiros navais e dos mecânicos que deram identidade ao local através da arte da pesca. Nessa tarefa, valoriza este livro apontamentos sobre essa arte, pugnando pela divulgação da sua história e avançando com possibilidades interpretativas para a construção dessa mesma identidade - curiosa é a aproximação semântica que o autor faz entre a expressão “vela de espicha” e a designação Espichel, que dá nome ao cabo, mostrando mesmo a sobreposição da vela com a carta orográfica local.

Assunto como a motorização das embarcações sesimbrenses, iniciada em 1926, leva-nos a um olhar sobre as adaptações feitas - passar dos remos para o motor, publicitar os equipamentos, alterar aspectos das embarcações (no cavername, por exemplo), novas técnicas a dominar, diferentes graus de especialização nas companhas, formas de resolver problemas resultantes da transformação (como o da interferência dos motores sobre a agulha das bússolas, por exemplo), novos desafios de segurança (não escapa à memória o incêndio a bordo da barca “Gemeniana”, em 1928, que usava um motor de automóvel adaptado, e consequente naufrágio da mesma), formas de abastecimento de combustível, entre muitas outras.

João Aldeia põe o leitor em contacto com mais de duas dezenas de protagonistas da história do tempo abrangido, actores neste processo de motorização, nascidos entre 1869 e 1905, extremos ocupados por dois membros da mesma família, pai e filho: Zózimo das Chagas e Zeferino das Chagas, respectivamente. Quanto às embarcações, na ordem da meia centena, são apresentadas no seu breve historial, com nomes ricos do ponto de vista simbólico - com predominância dos nomes femininos -, havendo uma delas, “Luz do Calvário”, que teve a sua companha imortalizada na literatura pela pena de Raul Brandão, em viagem de Fevereiro de 1923, relatada na obra Os Pescadores (publicada nesse mesmo ano e com nova edição no ano seguinte).

O livro de João Aldeia, que se percebe ser resultado de um empenho pessoal e emotivo (dedicado ao pai, que foi serralheiro mecânico e trabalhou para a frota pesqueira local), conta uma história que é longa e cheia de coisas a descobrir, numa linguagem acessível, que permite o (re)encontro com rostos que fizeram Sesimbra e chama a atenção para um sector importante nas dinâmicas locais que tem sido objecto de pouco estudo, não só em Sesimbra mas também na região. A motorização dos barcos é o pretexto deste estudo, mas é também uma chamada de atenção para a memória.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1268, 2024-03-27, pg. 2.

 

quinta-feira, 21 de março de 2024

Patrícia Reis e uma história em Sesimbra

 


“Agora já não posso perguntar” é uma frase que comporta diversos olhares: a dimensão do tempo entre um presente e o passado; uma certa nostalgia ou lamento pelo confronto com a impossibilidade permanente; a necessidade de se perguntar perante os mistérios que a vida e o mundo apresentam. Todas estas linhas se cruzam na narrativa a que a frase dá o título, alimentando o livro Sesimbra, de Patrícia Reis, o primeiro da colecção “Portugal” (Centro Atlântico, 2024), história povoada também com fotografias devidas a Libório Manuel Silva, numa combinação que respeita o propósito da série: “o mesmo horizonte para a ficção e a realidade, em que criatividade literária e riqueza fotográfica mergulham na nossa geografia.”

A história vive com as memórias de um narrador de 59 anos, que aproveita o que aprendeu para dar imagem da família, dos afectos, das crenças, das convicções, da terra, das vivências desde a infância, num percurso em que não faltam os familiares pescadores, a paixão futebolística pelo Clube Desportivo de Sesimbra (ainda que designado pelo seu anterior nome, Ases Futebol Clube, devido a uma ligação familiar), o caminhar pela vila, uma certa identidade da vida local e alguns momentos de humor (como o da justificação apresentada para a opção quanto à cor da viatura 4L dada por Nicolau, o pai do narrador).

As lembranças da personagem principal recuam aos seus 9 anos, tempo de 1974, marco cronológico importante para quem foi assistir à revolução em Lisboa, levado pelo pai e pelo tio, ambos numa euforia de vitória que ajuda à decisão de partirem de madrugada para serem testemunhas do momento histórico - a criança pouco entendia, mas ficou-lhe gravada a frase do pai para o tio, de incentivo e de pressa: “Foi hoje, está a acontecer agora mesmo, trouxe o carro, vamos.” Perplexo fica o jovem: “Naquele tempo não se ia a Lisboa por uma razão qualquer, só por algo importante, uma consulta médica, alguém de família que chegava de comboio, raramente de avião, só tínhamos uns primos que podiam vir de avião, viviam nos arredores de Paris, mas já não os víamos há uns anos.” O mistério para a viagem desvanecia-se lentamente, ainda que o pai explicasse: “Vamos a Lisboa ver a revolução. (...) Vamos deitar estes gajos abaixo de uma vez por todas.”

A revelação da importância deste momento vai, depois, sendo dada pela mãe, Delmina, mulher reservada, mas arguta e sensível para transmitir ensinamentos e valores - quando, em Maio de 1974, a televisão informava sobre o fim do processo das três Marias, a mãe comoveu-se e explicou ao jovem: “Quando uma mulher é julgada por algo que não fez é como se fôssemos todas julgadas, todas as mulheres.” Têm as mulheres papel importante nesta história - além da mãe, também a irmã mais nova do narrador, Rosa, construtora da sua autonomia, desvinculada da terra mas não da família, que optou pela vida na capital; e ainda Susana, professora, que, num percurso inverso, vem de Lisboa para Sesimbra, para construir uma história de paixão e para sentir a família, “o melhor porto de abrigo de todos”, como dizia Nicolau.

“Eu fui ver a revolução, é verdade, mas mantive o alívio de ter regressado a Sesimbra. E a vida correu como correm todas as vidas. Com as dificuldades de sempre, as guerras da malta da pesca, a Câmara Municipal que não sei o quê, as festas, o dia do santo no 4 de Maio... a lenda que me perseguiu na escola.” Personagem fiel à sua terra, o narrador faz passar algumas observações que dão relevo à identidade: a confiança entre as pessoas (“hoje vivo numa aldeia do concelho, com o mar à minha beira, vou comprar legumes ao meu vizinho, conheço as pessoas pelo nome. Se sair e não tiver dinheiro, por ter deixado a carteira esquecida num outro casaco, não é uma questão, vá-se lá embora, paga depois, num outro dia, quando der jeito.”); a proximidade e o sentido familiar (“Sesimbra também é isso, famílias que se prolongam, que se mantêm agarradas como correntes de ferro de uma âncora”); a epopeia da vida (“as histórias do mar e das gentes de Sesimbra passam de geração em geração”). Pelas memórias, passa também o sentido da aprendizagem dos afectos - “o meu pai olhava para a minha mãe com a devoção dos amorosos e isso deixou uma marca indelével em nós” -, valores que se reproduziram na personagem que conta.

Está o leitor perante uma história bonita, que se passeia pelos contornos entre a vila e o Espichel, alimentada de olhares e de dizeres, de proximidades, de espaços e de figuras com que nos podemos cruzar, valorizando as histórias locais e um olhar poético sobre a vida.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: nº 1263, 2024-03-20, pg. 10.

 

quinta-feira, 14 de março de 2024

Os versos de Miguel Caleiro (4)

 


A motivação principal das colectâneas de rimas de Miguel Caleiro eram as Festas da Arrábida, também ocasião para que fosse editado um opúsculo com os seus versos, cuja temática principal era a ida ao Convento da Arrábida para essa celebração, havendo também cantigas, que diferiam de ano para ano, motivadas por razões autobiográficas ou por questões sociais - por exemplo, na edição de 1916 dos Versos em honra das antigas Festas d’ Arrábida, Miguel Caleiro escolheu para a linha autobiográfica duas cantigas dedicadas aos pais e duas cantigas que tomam o poetar como tema, particularmente uma em que esboça o seu auto-retrato; já a imagem da época, questão importante pelas implicações sociais, políticas e históricas, foi ocupada com duas cantigas sob o título “Despedida para a Guerra”, relatando o momento da separação familiar dos que eram recrutados para ir “auxiliar o francês”.Retomando a edição do início da década de 1920 que nos tem servido de base, vale a pena olhar para umas loas à Senhora da Arrábida, vinte e oito quadras organizadas em quatro partes - “Saída de Azeitão”, “Chegada ao Convento”, “A despedida da Serra” e “Chegada a Azeitão”. Nelas, o leitor acompanha, no momento da saída, a ansiedade dos romeiros pela partida para a festa, o trajecto da berlinda que acompanha a Senhora, a despedida que o povo faz da imagem, o sinal de partida dado pelo sino da igreja; já no Convento, assiste-se aos momentos de devoção perante a “Rainha do Céu”, à contemplação da grandiosidade do cenário natural, à reza a pedir a bênção e protecção para os romeiros; o momento da despedida é feito sob o signo da oração, pesando também a emoção “de tão triste apartamento”, pois era chegada a hora de regressar à vila; no último quadro, da chegada a Azeitão, a comoção envolve os peregrinos, no meio dos repiques sineiros, com aqueles que ficaram a manifestarem o contentamento, pois era “chegada a santa Imagem / cheia de graça e louvor”, com um momento intenso de oração no final.

A ideia das loas para este momento festivo manteve-se pelos tempos. E, se algumas destas quadras se repetiram nas edições de vários anos, em 1946 (tinha Miguel Caleiro falecido há 11 anos), uma inovação surgia ao serem publicadas as Loas a Nossa Senhora da Arrábida, texto conjunto de Miguel Caleiro e de Sebastião da Gama (que tinha 22 anos à época e apenas um livro publicado). Das 28 quadras que constituem esta composição, organizadas nos mesmos quatro quadros, há oito que constam nos Versos de Caleiro do início da década de 1920. Não há a certeza de que todas as outras sejam de Sebastião da Gama, ainda que, em algumas, se consiga perceber a sua marca nas imagens que recorrem à Natureza, não se desconhecendo também o jeito que o jovem poeta tinha para a construção de quadras de gosto popular.

Esta junção dos dois poetas azeitonenses na publicação das Loas (que foram republicadas em 1966 e em 1996) alimenta também a admiração que Sebastião da Gama tinha por Miguel Caleiro - em Março de 1942, tinha Caleiro falecido há sete anos e estava Sebastião prestes a fazer 18 anos, o novel poeta azeitonense compôs um soneto em honra do antecessor, com a nota “para a sua campa”, assim retratando a memória: “Aqui repousam cinzas, pó e nada: / despojo humilde de quem foi alguém / e agora, com certeza, no Além, / maneja a Lira, a Lira bem-fadada. // Não vistes ‘inda a terra descuidada / que a torga, o alecrim, o lírio vêm, / a violeta, o malmequer também / tornar a mais formosa e delicada? // Teu estro foi, ó vate, o campo inculto / aonde foi nascer e tomou vulto / jardim tão perfumado, tão mimoso! // Teu corpo aqui, Miguel! Mas lá nos céus / eu bem te vejo a recitar a Deus / teus versos - flor’s de tom o mais vistoso!”

Que bom gesto de memória seria o de se conseguir uma compilação dos versos que Miguel Caleiro compôs, tendo como abertura este soneto de Sebastião da Gama, que constrói a feliz ideia de transformar o céu num espaço em que os poetas recitam versos para Deus!...

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1259, 2024-03-13, pg. 9.


quinta-feira, 7 de março de 2024

Os Versos de Miguel Caleiro (3)

 


Nos Versos de Miguel Caleiro, aparecidos cerca de 1920, passa também o sentimento da amizade, vivido numa festa feita em honra de Armando Barata, um seu amigo, sendo o poeta impressionado pela beleza do evento, tempo em que “nos passa a dor / entre as almas donairosas / que, fiéis e piedosas, / escutam a poesia” que lhes é oferecida pelo cantador. Os poemas são equiparados a “ramalhete de apreço”, constituído por dálias, verbenas e açucenas, imagem que serve também para elogiar a assistência - “são as flores que vejo / doçuras que amam poetas”. A cantiga (com uma quadra como mote e quatro décimas) conclui com a demonstração da alegria festiva e o agradecimento do poeta: “Ao ver tanta animação / nesta festa de amizade, / toda a alegria me invade / de raríssima confusão. / Perante a reunião / que escuta minhas glosas, / com palavras especiosas / são os mais gratos deveres, / elevando os vossos seres / como alfim mágicas rosas.”

Outra cantiga com o mesmo formato da anterior recorda uma assustadora tarde de inverno, em que é registado o ambiente sentido, oscilando entre planos gerais e planos de pormenor - a aflição dos camponeses que não podiam atravessar a ribeira para acudir à família, o tom assustador das trovoadas, os rebanhos assustados em fuga, as árvores partidas e arrancadas pelo vento, os telhados destruídos, o relampejar feroz, as águas a descerem pela montanha, a ponte e a azenha destruídas, a noite avassaladora, a morte do moleiro e do seu filho. A quadra que dá o mote anuncia bem a calamidade que se descreve: “Era uma noite de inverno; o céu parecia um inferno. / Estavam os astros em guerra. / A ribeira mal sustinha a grande cheia que vinha / pelas vertentes da serra”.

Duas cantigas assumem um pendor marcadamente autobiográfico, revelando alguns traços sobre o poeta destes Versos. A primeira, demonstrando a sua origem rural e modesta, o estatuto de poeta popular e de cantador que para si reclama e o reconhecimento do seu nível cultural, sujeita-se ao mote “Miguel Fernandes Caleiro, / um poeta camponês, / não pode cantar o fado / em correcto português”. A cantiga retrata o percurso do autor: nascido “numa aldeia de Azeitão”, em tempo de dificuldades sentidas por uma “humilde geração”, numa família sem posses financeiras para dar melhor formação ao filho. Na segunda décima, já o poeta valoriza o seu percurso, enaltecendo o trabalho, a honra e o autodidactismo - “Eu fui como uma pobre flor / pelo vento açoitada / e, herdeiro da enxada, / aprendi a cavador. / Nasci para trabalhador / no meio da honradez. / Em mim, não há altivez, / eu só canto irmãmente, / mas têm na vossa frente / um poeta camponês.” Prossegue a cantiga, manifestando a alegria por aquilo que faz, para terminar com uma evocação da figura da mãe e a afirmação do que entendia ser o poeta popular: “Minha mãe santo afecto / chorou ao ver-me crescer, / sem apenas aprender / as letras do alfabeto. / Assim, sou analfabeto, / mas não semeio a rudez. / E vós, povo que me vês, / queiram-me aqui desculpar, / porque eu não sei cantar / em correcto português.”

A segunda cantiga de marca autobiográfica começa por glorificar a poesia, associando-a à capacidade emotiva: “Os versos que ides ouvir / nesta singela canção / são flores que nascem d’alma, / que brotam do coração.” Assemelhando os poemas que compõe a um “raminho de flores”, confessa o tom pessoal ao considerá-los “rimas do meu sentir”, garantia que vai dando ao longo do poema, terminando com a assinatura que reafirma o seu estatuto e a sua simplicidade: “São canções de um camponês / que não sabe ler nem escrever, / por isso não podem ter / grande beleza talvez. / Foi o Caleiro que as fez / sem a metrificação. / P’ra lhe oferecer elas são / como desfolhadas rosas, / as minhas pobres glosas / que brotam do coração.”

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1254, 2024-03-06, pg. 10

 

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

Os versos de Miguel Caleiro (2)

 

 

Os Versos de Miguel Caleiro publicados por 1920, inserindo uma fotografia em que estão o seu autor e a afilhada Maria da Saúde em gesto de escrita do que está ouvindo, contêm onze poemas, maioritariamente influenciados por características locais (as Festas da Arrábida, a paisagem, circunstâncias de vizinhança), mas também pelo registo autobiográfico.

“Na Arrábida”, um poemeto com dezanove oitavas, esquema rimático constante e métrica variável, abre a série, quase configurando uma reportagem pessoal sobre a vivência da Festa da Arrábida - no primeiro dia, a chegada pela madrugada leva a curta estada no Convento e visitas à Lapa e ao Portinho, sendo o poeta acompanhado pelo canto do rouxinol até ao momento em que assiste à chegada dos pescadores, num olhar que bem representa uma tela do passado. O segundo dia é vivido no Convento, entre a alegria dos romeiros e os seus hábitos, particularmente no que respeita à devoção sentida, havendo também o compromisso pessoal do poeta - “trabalhar com amor do coração, / sempre pronto para ajudar meus companheiros”, manter-se como festeiro e recordar “com saudade os que morreram, / desta festa tão devotos promotores”. A parte que mais oitavas ocupa é a da partida e regresso a Azeitão, momento de ternura e emoção, pois a imagem da padroeira “só depois de passado um ano torna a vir, / esta serra montanhosa visitar”. O leitor assiste à narração da viagem a cavalo, à festa das bandeiras e estandartes, aos anjos no momento da despedida, num trajecto por Olivalinho, Calhariz, El Carmen, Parral, Pedreiras, Casais, Aldeia de Irmãos, Oleiros, S. Marcos, Baldrucas, até ao momento  da “linda entrada / que dá o círio nesta vila nossa amada”, tempo de alegria e de partilha, de festa, com repicar de sinos, arraial, foguetes, havendo ainda uma palavra para os mais cépticos na derradeira estrofe - “Para muitos já não há religião, / cada um tem o seu modo de pensar. / Uns querem que ela acabe e outros não, / é difícil tanta gente contentar... / Àqueles que ainda têm devoção / ninguém tem o direito de censurar, / é sempre livre a vontade de qualquer / e pensará da maneira que quiser.”

Três cantigas compostas por mote (quadra) e quatro décimas abordam ainda o momento da festa - uma, a propósito da partida para a serra, em que os sentimentos são uma mistura de alegria pela festa e pela participação e de tristeza ocasionada porque muitos “se estão lembrando / dos tristes horrores da guerra” (cantiga produzida durante a participação de Portugal na Grande Guerra, por certo); a segunda, a cantar o prazer de estar na Arrábida, entre rosmaninho, jasmim, medronheiros e chilreios, contemplando a vista sobre Azeitão e subindo ao Alto Formosinho; a terceira, incidindo sobre o Convento franciscano, motivo para evocar a lenda de Hildebrando e a construção da comunidade arrábida com Frei Martinho e Pedro de Alcântara.

A rivalidade entre duas aldeias, transferida para a argumentação dos respectivos santos patronos, está patente em duas cantigas que dialogam - uma, “dedicada ao Santo da minha aldeia que se zangou com o Santo da aldeia vizinha” (S. Sebastião); a outra, constituindo a resposta de S. Marcos aos remoques recebidos. O primeiro faz pública queixa logo no mote - “Eu sou o S. Sebastião / tão desprezado e sozinho, / o S. Marcos esse tem / tudo bem arranjadinho” e lembra as coisas desaparecidas da sua “velha morada” (louvando um tal “José da Tia” por ainda se esforçar na guarda) e o mau estado da calçada de acesso, lamentando ainda o abandono a que foi sujeito pelos antigos devotos e festeiros. A resposta de S. Marcos reflecte as conversas dos favores políticos locais - a partir da quadra “Ó mártir S. Sebastião, / não estejas assim zangado. / Deixa estar que o teu palácio / também vai ser arranjado”, o santo explica que as obras da sua capela tiveram de ocorrer porque o telhado estava a cair e anuncia que o seu vizinho também virá a ter obras (um chafariz e uma avenida), ainda que apresente uma justificação para o progresso na sua zona: “Dizes que isto é um jardim? / E admiras-te se for? / Tu não vês que o vereador / mora aqui ao pé de mim?”

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: nº 1549, 2024-02-28, pg. 6


quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

Os versos de Miguel Caleiro (1)



No primeiro número do jornal O Azeitonense, de 3 de Agosto de 1919, a terceira página abre com o título “Poetas humildes”, informando, logo no primeiro parágrafo: “os versos que abaixo reproduzimos, sendo, como são, de uma alma inculta, revelam um temperamento poético, de que muito haveria a esperar se fosse cultivado.” Depois, é explicada a razão para nada ter sido alterado no texto poético: não haveria, assim, adulteração do “temperamento afectivo e bom”.

Formalmente, o texto é uma cantiga, em que uma quadra (mote) anuncia o tema a desenvolver: “Eu gosto imenso de ouvir / pela fresca madrugada / o clarim do rouxinol / dar o toque de alvorada!” Seguem quatro décimas (glosas), retomando cada uma delas no final um verso do mote, desenvolvendo o tema do prazer da vida campestre - passeios no prado, canto da pastora e sons de flauta do pastor, trabalho agrícola das ceifeiras, cantar do rouxinol, moças na escamisada ou a transportar água da fonte.

O autor de tal poema é Miguel Fernandes Caleiro (1876-1935), de Aldeia de Irmãos, figura que o padre Manuel Frango de Sousa (1919-2000) divulgou na sua folha paroquial Azeitão - A Nossa Terra, em Fevereiro de 1989, dele dizendo ser “uma figura típica”, em quem “a espontaneidade era característica” e considerando a casa que ele animou e onde se cantava fado “um monumento de Azeitão”. Na última página do referido número de “O Azeitonense”, inteiramente dedicada a anúncios, consta o “Retiro Vila Jacinta de Miguel Fernandes Caleiro”, situado “nos Brejos, Casal de Bolinhos, Estrada de Coina”, espaço de “mercearia e belo retiro com bons petiscos e deliciosos vinhos”, condições que favoreceram os encontros de fado.

A sobrevivência dos textos de Miguel Caleiro deve-se, em grande parte, à sua sobrinha Maria da Saúde (1903-1995), que os transcrevia. Ligado às Festas da Arrábida, o poeta viu, no início da década de 1920, algumas das suas rimas publicadas sob o título Versos em honra das Antigas Festas d’Arrábida que pomposamente costumam realizar-se na pitoresca Vila de Azeitão, opúsculo de 16 páginas impresso na Tipografia Simões (com “oficinas movidas a força motriz”, em Setúbal), apresentado em “duas palavras”: “os versos que vão ler-se são simples e ingénuos como a sua alma de trabalhador do campo. Miguel Caleiro não sabe ler. As inúmeras canções populares de que é autor brotam-lhe espontâneas e é sua afilhada Maria da Saúde, uma engraçada pequena de 17 anos, que Caleiro estremece como se fora sua filha”, quem as escreve. É curioso que a nota sublinhe uma ideia que já tinha sido aflorada no recorte de O Azeitonense: “Dos versos de Caleiro diria de certo o nosso genial Guerra Junqueiro, se os lesse, que são como certas rosas que florescem nos matagais incultos.” Mas esta nota torna-se também interessante por recuperar o empenho que Guerra Junqueiro (1850-1923) pôs na divulgação da poesia popular, tal como fez no caso do poeta popular setubalense António Maria Eusébio (1819-1911), conhecido como “Calafate”, ao prefaciar a recolha dos seus Versos feita por Henrique das Neves em 1916, dizendo: “Não sabendo ler nem escrever, és um grande poeta (...). A tua bondade, meu velho, exala-se das tuas cantigas sem arte, como um aroma delicioso de um matagal inculto, que nasceu entre pedras (...) Ganhaste com o suor da fronte o pão de cada dia.” As palavras de Junqueiro sobre o Calafate poderiam ser aplicadas também a Caleiro, por certo...

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1245, 2024-02-22, pg. 10.


quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

A força que as mãos têm

 


A universalmente conhecida escultura de Rodin intitulada “Catedral” (1908) atrai pelo entrelaçar de duas mãos, que não se tocam, numa forma que convida à aproximação, ao recolhimento, à elevação. A delicadeza que transparece esculpida deixa que o silêncio domine, num crescendo que vai muito além da visão das mãos que quase prolongam o movimento - olhamos esta obra (que, inicialmente, não teve esse título) e associamos-lhe a expressividade que a mão tem em toda a obra de Auguste Rodin (1840-1917). Não terá sido a pensar nesta escultura que João Pina de Morais (1889-1953) escreveu sobre a imagem das mãos (mesmo porque o fez quando estava como combatente na Grande Guerra) no seu diário, em 24 de Abril de 1917, mas a citação poderia constituir legenda para a peça de Rodin: “As mãos são expressivas: como são suplicantes quando se erguem a encaminhar para o céu as palavras que se vão dizendo; como são dolorosas quando cheias de dor se contorcem aflitivas, e mais e mais.” (in A quem encontrar este livro… - Diário de Guerra 1917-1918, publicado em 2015).

A mão, símbolo de acção, de poder ou de generosidade, é também objecto de leituras poéticas, por vezes reprimidas pelos poderes instituídos... Quando a censura se deparou, em 1946, com a publicação colectiva Bloco - Teatro, Poesia, Conto, não hesitou em proibir a circulação da obra, entre outros motivos por causa do poema “Cântico” (em que o censor apôs um risco vermelho), de Mário Ruivo (1927-2017), um texto contra o trabalho escravo, que proclama: “Nós não temos carabinas / nem bombas nem baionetas // Nós não temos bombardeiros / nem couraçados nem tanks // Nós não temos casamatas / nem jeeps nem cavaleiros // Nós não temos nada disso / Não temos Não // Mas temos as nossas mãos / que semeiam o trigo / e ceifam as searas / e amassam o pão // Nós temos as nossas mãos / que arrancam do subsolo / o ferro e outros metais / que estão nos vossos canhões // Nós temos as nossas mãos / que extraem do seio da terra / todo o petróleo e carvão / que faz mover vossos navios vossos carros celulares // Nós temos as nossas mãos / que constroem as turbinas / e manejam os volantes e as alavancas / dos geradores eléctricos // E as máquinas das fábricas paradas / e a cidade às escuras / e os colectores sem água / e o padeiro sem vir / e o mercado fechado / E tudo com fome E tudo com fome / E A VIDA PARADA // Nós não temos carabinas / Não temos Não // Mas temos as nossas mãos / Mas temos as nossas mãos”.

Igualmente intenso na mensagem, pelo desafio que constitui para o homem pensante, construtor e interventivo, é o poema “As Mãos”, que Manuel Alegre (n. 1936) incluiu no livro O Canto e as Armas (1965), título também apreendido pela polícia política do Estado Novo, soneto que assim se inicia: “Com mãos se faz a paz se faz a guerra. / Com mãos tudo se faz e se desfaz. / Com mãos se faz o poema - e são de terra. / Com mãos se faz a guerra - e são a paz.” Depois de mencionar o valor do trabalho e a força transformadora exercida pelo homem, o poema conclui com um terceto apelativo: “De mãos é cada flor cada cidade. / Ninguém pode vencer estas espadas: / nas tuas mãos começa a liberdade.”

Vale ainda lembrar o último romance de José Gardeazabal (n. 1966), A Mãe e o Crocodilo (de 2023), obra de questionamento sobre a vida e sobre o mundo, que refere a força das mãos, a propósito de um fenómeno social muito actual: “Os imigrantes imigram com as mãos, é uma maneira de ganhar a vida. Quando não se conhece a língua, ganha-se a vida com as mãos. Depois da língua, a melhor parte do corpo são as duas mãos.”

A expressividade da mão pode definir-nos relativamente aos outros e ao mundo, às crenças e às situações; daí, também, a quantidade de expressões feitas em que a palavra “mão” surge, dando ideia da pluralidade de dimensões que interferem na vida. E os poetas, esses, surpreendem-nos com o uso metafórico que dela fazem, como muito bem o demonstraram, por exemplo, Pedro da Silveira (1922-2003), quando, no “Pequeno poema infinito”, construiu o terceto “A mão sobre o mapa / não viaja, / interroga.” (in Fui ao mar buscar laranjas, 2019), ou Sebastião da Gama (1924-1952), que, em Cabo da Boa Esperança (1947), confiando na segurança da mão, escreveu “Nem um momento só, / largo das mãos meu leme de certeza”, ou, indo ao encontro do acto de criar, definiu o poeta - “Era nas suas mãos que terminavam / as coisas infinitas e as finitas. / Por isso as suas mãos eram abismos / aonde se perdia o Pensamento.”

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1235, 2024-02-07, pg. 10

** Foto: Auguste Rodin, "Catedral" - Casa-Museu Rodin, Paris