quarta-feira, 10 de outubro de 2007

José Gomes Ferreira lido por Sylvie Rocha

Hoje, o espaço da aula foi diferente. Na Biblioteca Municipal de Palmela, havia a oportunidade de ouvir Sylvie Rocha (n. 1970, a integrar o grupo "Artistas Unidos") ler contos de José Gomes Ferreira (1900-1985), actividade integrada no Programa de Itinerâncias para a Promoção da Leitura. Inscrevi as duas turmas, raparigas e rapazes do alto dos seus 14 anos, e lá fomos.
A primeira reacção… “a senhora já actuou na televisão, não foi?” E a actriz lá desfiou, com grande dose de simplicidade, uma pequena teia biográfica de aparecimentos em telenovelas e outras séries, mas confessando a sua predilecção pelo teatro, desabafo que pôs logo de orelha mais atenta alguns alunos que gostam de teatro.
Com muita simplicidade, relatou a sua descoberta de José Gomes Ferreira através da poesia, primeiro, e por meio das narrativas de O Mundo dos Outros (1950), depois. E leu “A Boca Enorme”, história da pequenita sardenta que, da sua simplicidade achada num dia de acaso, chegou a adulta num mundo complicado, com um final em tom de hino à liberdade pelo narrador. A miudagem gostou. E veio outra história: a do Graxa, rapazote atrevido, de vida dura, a tentar fazer do mundo a imagem que para ele passaram. O pessoal continuou a gostar. E veio a terceira história: sobre a “Brandura de Costumes”, a revelar sentimentos contraditórios do que é ser-se português, também, ou do que é ser-se humano. Aplauso unânime. Palmas e risos. E uma aluna resolveu ir conversar com Sylvie Rocha sobre teatro. E outra decidiu ir pedir um autógrafo. E muitos outros se seguiram, a pedir folhas ou a rasgá-las do caderno, para aproveitar o gesto da dedicatória e do autógrafo.
Foi um momento de leitura bem interessante, com textos bem lidos e a despertarem o interesse. “Ó professor, houve algumas palavras que não percebi bem, mas vou percebê-las melhor quando for ler o livro…”, “Leu muito bem, parece que estávamos a ver as histórias no teatro…” De facto, a expressividade e a gestualidade a acompanharem a leitura, transformando as histórias em pedaços de vida, podem fazer parte da alma de um texto. Também houve quem gostasse menos, não por a sessão não interessar, mas porque estava sentado havia muito tempo e sempre era fora da escola e, fora da escola, não é para sentar…
Valeu bem a pena ouvir esta leitura de José Gomes Ferreira. Ele mesmo, desconfio que teria ficado contente com esta interpretação, de tal forma os miúdos e os adultos saltavam vivos do meio das letras e das páginas. Conheci o José Gomes Ferreira em 1982, numa altura em que a saúde e a vista já não lhe abundavam. Quem me facilitou o contacto foi Urbano Tavares Rodrigues, então meu professor. Fui falar com o poeta por causa do livro A memória das palavras (ou o gosto de falar de mim) (1965), interessado que já andava nas escritas autobiográficas. Não se importou que gravasse a conversa. Mas a cassete não chegou para o encontro dessa tarde. A parte mais interessante foi a não gravada. Questões de autobiografia e da vida levaram-nos a falar sobre a morte. “A morte? A morte é a vida do avesso!”, disse-me ele com entusiasmo suave e num ritmo de feitura de versos. Nunca mais esqueci esta definição. E, hoje, com os meus alunos (a quem contei também esta história), a ouvir a bela leitura feita por Sylvie Rocha, deliciámo-nos a conviver com José Gomes Ferreira, um escritor recomendado em tempos em que o esquecimento parece querer reinar.