quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

Para uma antologia da região de Setúbal (5)

Legendas de Portugal é uma série de catorze volumes, redigidos por Rocha Martins (1879-1952), contendo textos que relatam momentos históricos ligados às terras portuguesas, com primeira edição de finais da década de 20, em tramas eivadas de acção, de modo a cativarem o leitor.
O 12º volume inclui um momento da história passada em Setúbal, em capítulo intitulado “Justiça de D. João II”, evocando factos de 1484 relacionados com a tentativa de assassínio que a nobreza queria perpetrar sobre a figura do rei, que, no entanto, graças a informações de um tal Diogo Tinoco e, depois, de Vasco Coutinho, conseguiu desmantelar a conspiração. A história contada associa a lenda da Casa das Quatro Cabeças, que tem andado sempre ligada a esta tentativa de regicídio, muito embora não haja disso provas.
A figura do rei aparece-nos séria, elegante, decidida, com pose de estado. Em Setúbal, desloca-se entre o Convento de S. Francisco, Tróino e a casa de Nuno da Cunha e a história passa-se no Verão de 1484, entre Julho e finais de Agosto.
Pela escrita de Rocha Martins passa uma fina e detalhada caracterização psicológica das personagens, ainda que o narrador não esconda que está a imaginar o que se passaria na mente das mesmas – por exemplo, quando o Duque de Viseu, instalado em Palmela, é chamado para ir a um encontro com o rei em Setúbal, sem saber qual o assunto, comenta o narrador: “Ignorava o que lhe queria, assim apressadamente (…). Decerto se tratava de caso de gravidade e, ao lembrar-se de ter falhado, na véspera, o golpe do assassínio, deveria ter muito medo de punição.” O narrador tenta assim pôr-se na pele da personagem… a tal ponto que, quando o Duque de Viseu está a chegar a Setúbal, relata: “Bem via, não era para coisa boa que o chamavam; e quando entrou nas ruas ardentes, sobre cujas pedras farulhavam as ferraduras da montada, mais lhe apetecia meter-se para as bandas do Sado, fugir nalgum barco, acolher-se nas vastas sombras da Arrábida, merendar nalgum vergel perfumado pelos laranjais do que escutar a voz furibunda do juiz.” Mal sabia o Duque que caminhava para a morte, friamente cumprida e executada pelo próprio rei, sem delongas, na casa de Nuno da Cunha!...
Depois, foi a prisão e morte dos outros conjurados, nomeadamente o bispo de Évora, que foi enclausurado na cisterna do castelo de Palmela, ali estando, “nas profundezas do poço, onde coaxavam as rãs e ele gemia, na treva, desolado e perdido, sem confortos, passando da prelacia para o cárcere, imundo e bafiento, onde estava com os pés, ora na humidade, ora na lama”. Ali morreria o bispo, já depois de ter sabido da degolação de seu irmão, outro conspirador, e de ter conhecido o destino dos seus comparsas, vítima da peçonha.
Da acção de D. João II fica uma imagem de chefe incontestado e decidido, que tanto punia como concedia favores – “Era assim. Depois da punição as mercês; e tão pingues, e ao mesmo tempo tão justamente talhadas que todos se admiravam de tanta integridade em homem tão terrível.” A narrativa de Rocha Martins surge intensa, com pormenores que evidenciam o sentido justiceiro do monarca e acentuam o sofrimento dos castigados.
Setúbal foi, assim, a terra onde poderia ter acontecido o primeiro regicídio em Portugal, antes sendo marcada pelo sítio onde D. João II aproveitou para vincar o seu poder e demonstrar o seu espírito de decisão. Também aqui ficou deliberado que o rei seguinte não se chamaria Diogo, o conspirador irmão do bispo de Évora, antes seria Manuel, nesse momento feito Duque de Beja e herdeiro de quase todos os bens do Duque de Viseu, seu irmão.
Os outros dois episódios relatados neste número de Legendas de Portugal intitulam-se “A tomada de Chelb e sagração dos Infantes” (relativo a Silves e Tavira) e “O Mestre de Cristo” (alusivo a Tomar).
[foto: capa do 12º vol. de Legendas de Portugal, reproduzindo "D. João II, figura primacial da legenda da cidade de Setúbal"]

Sem comentários: