terça-feira, 31 de julho de 2007

Luísa Todi na Rússia

"A aventura russa do rouxinol de Setúbal" é o texto que José Milhazes publicou no seu blog e que a edição online do Pravda, de 30 de Julho, reproduziu. O "rouxinol" é Luísa Todi, uma metáfora que lhe assenta bem, tão bem como aquele título que Maria Isabel Mendonça Soares (a que já aqui me referi, em 9 de Julho) inventou para um capítulo sobre ela - "Uma voz que encantou a Europa", aí incluindo a actuação na Rússia, naturalmente.


Painel de azulejos sobre Setúbal, na Escola de 1º Ciclo dos Pinheirinhos (Setúbal),
onde se pode ver a figura de Luísa Todi

No "Correio de Setúbal" de hoje

DIÁRIO DA AUTO-ESTIMA – 64
Manuel Alegre I – O artigo que o diário “Público” recentemente divulgou, assinado por Manuel Alegre, “Contra o medo, a liberdade”, agitou águas e demonstrou como são envernizadas as relações entre políticos, muitas vezes do mesmo partido. Alegre manifestou-se contra uma forma de estar na política e no poder que tem permitido o funcionamento da chamada “lógica de aparelho”, em nome da qual tudo vale, ela mesma erigida em ideologia. A oportunidade deste escrito resulta das situações apontadas como sendo “a delação e a confusão entre lealdade e subserviência”. Toda a gente sabe a que acontecimentos se refere Manuel Alegre e também não se pode ignorar que, não tendo que haver heróis, não ficaram bem os processos pelos quais os decisores tomaram as decisões relativamente aos casos de que se tem falado.
Manuel Alegre II – Poder-se-á dizer que o conteúdo desta mensagem não é novo nas intervenções do deputado-escritor. Mas o que não se poderá ignorar é a intervenção que Alegre tem tido sempre em prol da liberdade de expressão, seja nos seus poemas (que foram voz de muito “amordaçado”, que entusiasmaram por certo muitos dos políticos estabelecidos de agora), seja na sua prática de deputado, seja na sua visão de cidadania, haja em vista as vezes em que agiu por sua conta e risco, à margem do partido a que pertence.
Manuel Alegre III – Quando, após a divulgação do texto no “Público”, o histórico Almeida Santos falou numa emissora, dizendo que este texto era “humilhante”, não foi para se pôr ao lado de Alegre ou para criticar o partido, mas para, de alguma forma, minimizar os efeitos que a opinião do deputado poderia desencadear. Depois, houve comentadores que acentuaram a falta de novidade no discurso, como se todos os discursos tivessem que ter uma novidade, como se não fosse necessário falar muitas vezes do que é óbvio, porque sabemos que as evidências, de tão evidentes que são, se transformam muitas vezes em coisas esquecidas (como, por exemplo, a liberdade ou as restrições que lhe tentem impor). O ponto alto chegou com o Primeiro-Ministro a ir a reboque dos comentadores, considerando na televisão que esta opinião de Alegre faz parte do figurino, dizendo: “É um clássico. Alegre escreve de três em três anos um artigo a dizer que há medo. O PS é um partido de liberdade.”
Manuel Alegre IV – O que nenhum destes comentários conseguiu esconder foi uma certa dose de altivez, porque uma boa forma de levar ao esquecimento é ignorar ou fingir que se ignora o que se passa. Alegre foi mais bem-educado no seu texto. E conseguiu criticar, coisa que muitas opiniões geradas a partir dele não foram capazes de fazer, nem sequer de assumir como uma auto-crítica ou como um aviso. Não, em Portugal, tudo vai bem e a liberdade está garantida! Será mesmo assim?

domingo, 29 de julho de 2007

Para uma antologia da região de Setúbal (1)

Albert Jouvin e o Sal
O francês Albert Jouvin (de Rochefort), administrador de finanças em Limoges em 1675, era homem viajado. Em 1672, publicou a obra resultante dos seus itinerários, intitulada Le Voyageur d’Europe, où sont les voyages de France, d’Italie et de Malte, d’Espagne et de Portugal, des Pays-Bas, d’Allemagne et de Pologne, d’Angleterre, de Danemark et de Suède.
A narrativa da viagem que fez em Espanha e em Portugal consta no segundo dos oito volumes que compõem a obra. De Setúbal, Jouvin ouviu falar por causa do sal. Não esteve na terra do Sado, mas fez-lhe referência no escrito, metida na viagem entre Vendas Novas e Aldeia Galega [Montijo]: “há ali um rio que forma terrenos pantanosos, e que passámos, e onde encontrámos a pousada, de onde continuámos por bosques e areais até à povoação de Aldeia Galega, que está na margem do Tejo, sobre um pequeno golfo que o mar invade, acabando com grandes terrenos encharcados onde se produz sal, como em vários sítios de Portugal, principalmente na região de Setúbal, a cinco ou seis léguas daqui, e em Aveiro (…), que os ingleses, os suecos, os dinamarqueses, os holandeses, os escoceses, os hamburgueses e outros estrangeiros vêm carregar todos os anos como troca das suas madeiras para a construção de barcos, ou o seu pescado salgado, trigo, cobre, carvão mineral, ferro, chumbo e outras mercadorias que não há em Portugal. (…)”.
Não conheço tradução portuguesa da obra e a que apresento é feita a partir de uma edição em castelhano, publicada numa antologia organizada por J. García Mercadal, cujo segundo tomo estampa relatos escritos no século XVII (Viajantes Extranjeros por España y Portugal. Madrid: Aguilar, 1959).

sábado, 28 de julho de 2007

Couto Viana, Mourão-Ferreira e Sebastião da Gama: um trio numa geração

Um artigo de António Manuel Couto Viana na última edição da revista Prelo (Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, nº 4, Janeiro-Abril.2007) reúne memórias sobre três figuras da cultura portuguesa nascidas na década de 20, que se tornaram emblemáticas na literatura a partir de meados da década de 40: David Mourão-Ferreira (1927-1996), Sebastião da Gama (1924-1952) e Couto Viana (n. 1923).
O texto acentua o seu cariz autobiográfico logo no título – “David Mourão-Ferreira nas minhas memórias de adolescente” – e poderá fazer parte de um já extenso rol de escritos memorialísticos de Couto Viana, cuja maior parte está reunida em livro – Coração arquivista (1977), As (e)vocações literárias (1980), Gentes e Cousas d’Antre Minho e Lima (1988), Colegial de letras e lembranças (1994), Escavações de superfície (1995) e Ler, escrever e contar (1999).
Ao longo das quinze páginas do artigo, Couto Viana relembra as afinidades culturais, literárias e geracionais com David Mourão-Ferreira a partir de um encontro ocorrido em 1946, ano em que, com 23 anos e vindo de Viana do Castelo, chegou a Lisboa. No ano anterior, já Sebastião da Gama tinha publicado o seu livro inaugural, Serra-Mãe. E é por aí que começa a relação – “Nesse ano de 1946, recebi de uma amiga de infância, Eugénia Aurora, a notícia de que o poeta Sebastião da Gama, autor do livro Serra-Mãe, por mim tão admirado, havia sido convidado por seu pai, Conde d’Aurora, para passar uns dias no seu solar de Ponte de Lima. (…) Eugénia falara-lhe de mim e desejava que nos conhecêssemos. Para isso, dera-lhe o meu contacto.” [sublinhado meu]
Regressado da sua viagem a terras do Lima, Sebastião da Gama não demorou a telefonar a Couto Viana, tendo sido aprazado encontro para o Café Chiado, em Lisboa. Quem esteve presente nesse encontro? Sebastião da Gama não apareceu sozinho; trouxe com ele Luís Amaro (n. 1923) e, no interior do café, juntaram-se a outro amigo de Sebastião, o jovem David Mourão-Ferreira. Assim se iniciava um caminho de amizade, em que todos os convivas estavam unidos pela poesia e a que muitos outros viriam a juntar-se...
Depois deste primeiro encontro, chegaram as afinidades culturais. E prossegue o memorialista: “Porque tínhamos amigos que prezavam a literatura, sobretudo a poesia, e partilhavam de iguais gostos estéticos, começámos a considerar-nos uma geração, bem diferenciada da anterior, a dos anos 40, voltada para o social, intitulando-se neo-realista.” Os encontros foram mais assíduos entre Couto Viana e Mourão-Ferreira, quer porque ambos moravam em Lisboa, quer porque ambos tinham também a paixão do teatro. Mas “a boémia nocturna espalhara-se por longos passeios na Lisboa pacata, às vezes na companhia de Sebastião da Gama”.
Tal convívio desembocou no aparecimento da revista literária Távola Redonda (que andava a germinar desde 1947, primeiro com o título proposto de Clima e, depois, de Arame Farpado, hipóteses que, na hora da decisão, acabaram por pender para o mito arturiano, aí se enaltecendo a poesia e a tradição, que viria a ser o encontro com o lirismo). “Com a concordância do núcleo fundador, o David, o Luís de Macedo, o Vaz Pereira, o Sebastião da Gama, o João Belchior Viegas, a Fernanda Botelho, o Fernando Guedes e o Fernando de Paços, Távola Redonda, ‘folhas de poesia’, vinha a lume no dia 17 de Janeiro de 1950, ainda que com a data de 15 desse mês. E prometia ocupar as bancas das livrarias, quinzenalmente.” Todos estes nomes viriam a assinar obra literária autónoma, com excepção de Vaz Pereira, que continuou a assinar na área do desenho e da ilustração.
O texto de Couto Viana continua, relatando a história do percurso literário que teve com Mourão-Ferreira. Mas, a partir daqui, os encontros, fossem eles físicos ou epistolares, entre Sebastião da Gama e Couto Viana foram ainda muitos, sobretudo por causa da Távola Redonda. Desde o Portinho da Arrábida, onde Sebastião da Gama vivia, as missivas para Couto Viana e para Mourão-Ferreira eram assíduas, tendo como motivo a qualidade e a publicação da revista, o aconselhamento, a crítica. Sebastião da Gama teve colaboração nos números 1, 6, 7 e 8 da Távola. Já postumamente, apareceram textos seus nos números duplos 16/17 e 19/20. A revista terminou o seu ciclo no vigésimo número, datado de 15 de Julho de 1954. Mas o número 16/17, saído em 30 de Abril de 1953, constituiu uma homenagem a Sebastião da Gama (que falecera em 7 de Fevereiro do ano anterior), vinda dos seus colegas de geração – Matilde Rosa Araújo (n. 1921), Júlio Evangelista (1927-2005), Couto Viana, Miguel de Castro (pseudónimo de Jasmim Rodrigues da Silva, a residir em Setúbal e “descoberto” para a poesia por Sebastião da Gama, n. 1925), Fernando Guedes (n. 1929), Mourão-Ferreira, Luiz de Macedo (pseudónimo de Luís Chaves de Oliveira, n. 1925), Cristovam Pavia (1933-1968), Artur Ribeiro (de Setúbal), Fausto Denis, João Sant’Iago (n. 1918) e Leonor de Castilho – e de alguns vultos já respeitadíssimos na cultura e na literatura portuguesa – José Régio (1901-1969), seu amigo, e Hernâni Cidade (1887-1975), seu professor e amigo. No texto “Para uma interpretação da poesia de Sebastião da Gama” aí publicado, Mourão-Ferreira escrevia que ela constituía “uma pessoalíssima e lírica epopeia de exaltação à Vida” e “uma das mais extraordinárias aventuras da Poesia portuguesa contemporânea”. Já Couto Viana exarou no poema “Lápide”, divulgado também nesse número, o desafio à memória: “Cada hora que somos nos desgasta: / O tempo é vil e a juventude é casta. / - Só merece viver quem morre cedo.” O ciclo da amizade firmou essa mesma memória.
[A primeira fotografia, de António Manuel Couto Viana, visto por Cília Costa, data de 9 de Junho de 2007, aquando da inauguração do monumento a Sebastião da Gama, em Azeitão; a segunda fotografia, captando um encontro entre Sebastião da Gama e David Mourão-Ferreira no Portinho da Arrábida, data de 1946.]

sexta-feira, 27 de julho de 2007

Fernando Paulino: um poema

A noite é um lugar sem som
estas palavras não têm amanhã saltam os muros
da alma pernoitam na sombra dos alpendres
plantam sementes de poemas entre as estrelas do dizer

transportam um novo ciclo de escrita
onde tudo se repete no teu olhar de folha solta

entre as densas paredes da casa desarrumo versos
nos arrabaldes do silêncio a noite é um lugar sem som

Fernando Paulino (n. Setúbal, 1961) é autor de Livro do sol (1983), À face da luz (1997) e A luz e a rosa (2001), tem colaboração em diversas antologias e está ligado a vários grupos de poesia. Recebeu já o prémio "Manuel Maria Barbosa du Bocage", atribuído pela LASA (Liga dos Amigos de Setúbal e Azeitão). "A noite é um lugar sem som", que agora se publica, é o primeiro de um conjunto de poemas sob esse título.

quinta-feira, 26 de julho de 2007

Sobre Sophia e os "Contos Exemplares"

Nos cruzamentos dos cinco livros, a Teresa Lopes escolheu textos de Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004) e, ao dizer que apreciava na sua escrita "a claridade das coisas e das palavras, a medida, o rigor, os valores que podemos passar sem ser moralistas, o simples prazer de ler, apenas por ler", pôs lá muito do que caracteriza a escrita poética ou ensaística de Sophia.
Há um seu livro que sempre me impressionou - Contos Exemplares (1962), com particular atenção sobre as narrativas "A Viagem" e "Homero".
Na primeira, há sabedoria sobre a vida ("Todas as coisas pareciam acesas. (...) É o meio da vida."), sobre o feminino ("Na concha das suas mãos a mulher bebeu e deu de beber ao homem." ou "O perfil da mulher recortava-se entre as flores."), sobre a ecologia ("Ouvia-se o silêncio dos musgos e da terra." ou "Mas só ouviu o silêncio palpitante da terra."), sobre a memória ("Viu que, quando as raízes se rompessem, não se poderia agarrar a nada, nem mesmo a si própria. Pois era ela própria o que ela agora ia perder.")
Na segunda, há a força que ressalta da personagem Búzio, que era "como um monumento manuelino", e a valorização da palavra e do discurso - o título do conto é, de resto, emblemático - a tal ponto que a personagem narradora recorda, muito tempo volvido e em jeito de memória, o discurso de Búzio ao mar: "Lembro-me de que eram palavras moduladas como um canto, palavras quase visíveis que ocupavam os espaços do ar com a sua forma, a sua densidade e o seu peso. Palavras que chamavam pelas coisas. Palavras brilhantes como as escamas dum peixe, palavras grandes e desertas como praias. E as suas palavras reuniam os rostos dispersos da alegria da terra. Ele os invocava, os mostrava, os nomeava: vento, frescura das águas, oiro do sol, silêncio e brilho das estrelas." Homérico? Sim, por ser uma homenagem à língua e à literatura.

quarta-feira, 25 de julho de 2007

Sete notas depois de ler Steiner sobre o livro

Um livro que acabei de ler hoje e de que gostei: O silêncio dos livros, de George Steiner, numa edição (Lisboa: Gradiva, 2007) que acrescenta um texto, também ensaístico, de Michel Crépu, referente à leitura e com o freudiano título de Esse vício ainda impune. Num tempo em que se volta a falar da(s) liberdade(s) e do direito que a ela(s) temos, é pertinente dizer também sobre a liberdade dos livros. E registo algumas notas.
1. O poder do texto escrito é imenso, entrando no domínio do normativo. Por essa razão, não chegam as intenções anunciadas por um governante; é preciso que elas sejam plasmadas na escrita para fazerem lei. Isto conduz-nos a duas evidências: o poder de quem é letrado e a possibilidade de um texto ser refutado ou questionado apenas com outro texto.
2. “A escrita debilita o poder da memória”, porque “aquilo que fica escrito e que, portanto, pode ser armazenado, já não precisa de ser confiado à memória.” As histórias transmitidas oralmente procedem à actualização da memória, hoje tão maltratada, de resto. A questão da memória é mesmo preocupante e vê-se o seu menosprezo um pouco por todo o lado, como, por exemplo, nesta história: há tempos, numa turma em que havia um aluno originário de um país do leste europeu, um colega interpelou-o para saber a razão de ele ser muito bom aluno em Matemática, o que melhores resultados obtinha na turma, apesar da dificuldade linguística. A resposta foi lapidar: no seu país de origem, as calculadoras só são permitidas em níveis de estudo mais avançados; para ele, tinha sido novidade chegar a Portugal e ver a calculadora a ser utilizada logo desde os níveis mais elementares… Saber a tabuada? Oh, mas isso vê-se na calculadora, no telemóvel ou no relógio… aprende-se no quotidiano escolar.
3. A censura, ainda que travestindo-se de variadas formas, tem acompanhado os tempos e a História, “é tão velha e omnipresente como a escrita”. Bastará, nos tempos de hoje, pensar-se no que significa o “politicamente correcto”… uma metáfora da mesma censura, curiosamente um dos mecanismos que o acto censório incita, na medida em que a palavra se recria e o discurso se inventa para dizer o proibido.
4. A leitura pressupõe bibliotecas e é amiga do silêncio. O frenesim crescente da humanidade tem vindo a destruir estas duas condições, sobretudo a segunda, e, por vezes, as bibliotecas viram centros de convívio, lugares de ruído e de tudo, menos de amizade aos livros e à leitura.
5. A leitura pode desumanizar. Basta que o leitor atinja o grau do cúmulo enquanto leitor e passe a “acreditar” na ficção, a revoltar-se com a “eternidade” das personagens; a sua relação com o freudiano “princípio da realidade” irá por água abaixo. E questiona Steiner, depois de invocar Montaigne, Yeats e Wagner: “Enquanto professor, alguém para quem a literatura, a filosofia, a música ou as artes são a verdadeira substância da vida, como poderei eu exprimir a necessidade que sinto de uma lucidez moral, consciente das necessidades humanas e da injustiça que torna possível uma cultura a tal ponto elevada?”
6. Como será a leitura do/no futuro? “É possível que o tipo de leitura (…) clássica venha a ser de novo uma espécie de paixão particular, ensinada em casas de leitura (…) ou como a leitura que era praticada nas escolas monásticas ou nos refeitórios conventuais da Idade Média.
7. Michel Crépu, em Esse vício ainda impune, reunido no mesmo livro, “lê” questões que Steiner deixou. Insiste na falta de paciência e de silêncio que nos vai caracterizando e questiona-se quanto ao efeito desta realidade na leitura tal como hoje a concebemos. Em surdina (ou talvez não), vai surgindo “esta guerra aos desacatos do vício ainda impune, em nome do desenvolvimento e da rentabilidade tanto psicológica como comercial, (...) conduzida por um exército de patetas radiantes de estupidez e de uma ambição feroz”. Todos reconhecemos essa classe estúpida e betinha, cheia de falta de cultura e até de sentido. No final, fica, todavia, a esperança de nos cruzarmos com alguém que também se sinta incendiado “por uma palavra nascida nas profundezas de uma biblioteca”.

segunda-feira, 23 de julho de 2007

Camilo e (alguma) moda

Ontem, escrevi sobre uma exposição de moda de que gostei. Hoje, apresento uma leitura da moda de há 150 anos, cuja escrita me diverte. As imagens são da exposição a que ontem aludi: a primeira, da época rococó, e a segunda, contemporânea do escrito cuja leitura sugiro, apesar da extensão...
Em 1856, Camilo Castelo Branco colaborava no periódico vianense A Aurora do Lima (criado em Dezembro de 1855, ainda hoje editado, e em continuidade, o que o torna no mais antigo jornal do continente português em publicação), assinando umas crónicas críticas sob o pseudónimo de João Júnior. Saiu em 23 de Setembro de 1856 o texto que contém o excerto que a seguir reproduzo, meio século mais tarde recolhido em Folhetins de Camilo Castelo Branco publicados n’A Aurora do Lima - 1ª série (Viana do Castelo: 1911). Nele pode o leitor ver a linguagem forte e irónica de Camilo, a crítica intensa aos barões e à sociedade, a graça camiliana em todo o seu esplendor.
Ó meu redactor, se V. soubesse quem as elegantes do Porto arremedam no seu andar requebrado, mórbido e voluptuoso!... Benzia-se!
As saias-mirinais aumentam gradualmente o bojo. Em rua estreita, o encontro de mulher-balão com homem gordo é um perigo. Eu de mim, espadela humana, achato-me como inteligência de barão e deixo passar o leviatã de pano cru e barba de baleia.
A respeito destas saias quer o meu amigo ver o que há mais de cem anos disse um folhetinista português? A coisa é um diálogo:
'SOLDADO: No tempo da minha avó, quando tinha caído nesta terra uma praga de donaires que aqui andou e fazia inchar a gente de sorte, que uma mulher, por magra que fosse, parecia um tonel, que em lugar de alguma aduela, que lhe faltava, tinha muitos arcos de sobejo – perguntei eu a um curioso de antigualhas se sabia donde eram oriundos aqueles inchaços? E ele me respondeu: que as mulheres tanto morreram por andar à moda que a moda lhes pagou o afecto em lhes oferecer aqueles mausoléus ou essas em que jaziam embalsamadas para espectáculo do povo; mas ainda esta razão me não quadrava, e não achei quem me desse outra, antes me disseram que a não havia.
LETRADO: Olhai: arremataram o contrato da mentira, um poeta e um alfaiate, e para que mais lhe rendesse, disse aquele que as damas não tinham pernas, e este então inventou aquela forma de peanhas em que assentassem os meios corpos que lhes atribuíam para com mais decência serem veneradas estas figuras. Se não foi este despropósito, não tenho até agora notícia doutro que engendrasse aquele.'

Não lhe comunico o fragmento como coisa muito engraçada, mas é para que fiquem sabendo os que o não sabiam que tivemos, há mais de um século, folhetinistas com juízo e senhoras que podiam muito bem fingir que o não tinham. As de então chamavam-se almotacés da bizarria, as de hoje são janotas. Ora o folhetinista ninguém hoje fala dele: chamava-se Silvestre Silvério da Silveira e Silva. Os de hoje não têm tantos SS, mas têm mais TT.
Lá por Lisboa já há quem ponha em letra redonda que o tal balão é necessário para o enfeite da mulher. Quem tal diz é um herege do senso comum e reclama um sedenho na nuca e panos de água fria na cabeça! É abusar muito dos tipos! É querer fazer depender o mérito duma mulher de mais oito varas de paninho, quatro arráteis de pós de goma e dois costais de algodão. É preconizar a impostura, fomentar a traição aos olhos da humanidade. É colocar um marido, no seu primeiro dia de felicidade, na dolorosa alternativa do divórcio ou da resignação com os ossos da esposa que se lhe tinham perfidamente mostrado cobertos de túmidos rofegos e velas de mezena. Celibatários, ponde os vossos olhos nisto! Não vos caseis sem um atestado reconhecido da costureira da noiva. Um homem, que tem na fronte escrito o lema glorioso do seu destino, não deve casar-se com mulher-mirinae. As mulheres vestem de modo que falsificam o Evangelho. O marido não pode dizer da mulher: a carne da minha carne; metade é algodão em pasta.

domingo, 22 de julho de 2007

"O Papel da Moda" em papel

Até 28 de Julho, os interessados ainda podem viajar pelos percursos da moda se visitarem a exposição "O Papel da Moda através da História", em exibição no último piso do "El Corte Inglés", em Lisboa.
Particularidades desta exposição são: o facto de ela mostrar a moda feminina de quatro milénios, desde o Egipto faraónico; o pormenor de as indumentárias serem construídas em papel e igualarem o tamanho real; a associação que é possível ser feita entre moda e sociedade, entre moda e tempos da História; a presença de personagens históricas (rainha Santa Isabel e outras), de cenas saídas de quadros (das "Meninas", de Velázquez, por exemplo), de muitas latitudes (Egipto, Inglaterra, França, Espanha, Itália, etc.), de personagens incontornáveis no mundo da moda (Chanel, Dior, Ricci, Ruiz de la Prada, entre outras).
Por aqui passa aquilo que seria o "glamour" de cada época. E por aqui passam também algumas referências a especificidades portuguesas: é sumptuosa a encenação do Marquês de Pombal com as suas acompanhantes, em tons de azul, usando vestimentas que reproduzem azulejos; é surpreendente o último quadro da exposição, que retrata o trajo regional dos "Noivos de Viana do Castelo".
Cada figurino está acompanhado pela respectiva legenda, que o contextualiza na História. O visitante poderá ainda guardar como recordação um desdobrável que reproduz fotografias dos 80 modelos expostos. Segundo informação constante nas legendas e no desdobrável, a produção destes quadros deveu-se a uma "equipa de investigadores e de especialistas da área da moda", coordenada por Roberto Comas (70 anos, a trabalhar no"El Corte Inglés" desde os 15).

sexta-feira, 20 de julho de 2007

Pagelas Setubalenses - 3

Ânforas do Sado
Setúbal não tem nenhuma Rua das Ânforas, mas a relação entre as ânforas e o peixe funcionou, nas margens do Sado, durante, pelo menos, quatro séculos. Hoje, a ânfora é a figura principal do logótipo do Agrupamento Vertical de Escolas Cetóbriga, com sede na Escola Básica de 2º e 3º Ciclos de Aranguez.
A tradição conserveira sadina justifica-se por condições locais de favor, como a riqueza piscícola do estuário e a qualidade do seu sal. Aqui se implantaram fábricas de preparados piscícolas, conforme pode ser observado nas salgadeiras ("cetárias") mostradas na Travessa Frei Gaspar (Setúbal) ou nas ruínas de Tróia ou em restos existentes na Comenda e no Creiro (Arrábida). De forma subsidiária prosperou também a olaria à custa da produção de ânforas para o transporte dos preparados de peixe.
Entre Alcácer do Sal e Setúbal, na margem direita do Sado, são conhecidas sete fábricas ligadas à produção anfórica. Saídas das olarias, as ânforas destinavam-se a ser enchidas com preparado de peixe. A temporada trazia à volta de 1890 barcos de pequena envergadura até Tróia ou cerca de 370 cargueiros de envergadura média, sabendo-se que tais embarcações podiam atingir os quarenta metros e transportar largas centenas de ânforas. O carregamento fazia assentar o pé da primeira camada de ânforas sobre estrutura adequada, alojando-se o pé das ânforas das camadas superiores nos espaços livres criados entre os colos de cada conjunto de quatro ânforas. Depois, era a viagem com destino a Roma, seguindo a rota mediterrânica.
DOUTROS TEMPOS: "A Sociedade Arqueológica Lusitana, organizada no ano de 1849, mandou fazer [em Tróia] algumas escavações, em resultado das quais se descobriram muitos vasos de diferentes formas e matérias, lâmpadas, ânforas, lacrimatórios, muitos fragmentos de louça, troços de coluna, instrumentos agrários, instrumentos de osso apropriados para o fabrico de redes, pedaços de mosaico e restos de paredes de casas revestidas dele, salgadeiras, termas e mais de duzentas medalhas romanas e algumas de maior antiguidade.” (Manuel Maria Portela, Notícias dos Monumentos Nacionais e Edifícios e Lugares Notáveis do Concelho de Setúbal, 1882)

quinta-feira, 19 de julho de 2007

Palmela sem (algumas) palmeiras



Igreja de S. Pedro (Palmela), por Pedro Fortuna (1995)
A notícia é da Pal FM de ontem: das três palmeiras que havia em frente da igreja de S. Pedro, em Palmela, já não há nenhuma. Depois de, em 7 de Maio, uma delas ter caído, o Serviço Municipal de Protecção Civil, a Junta de Freguesia de Palmela e a Paróquia de Palmela ponderaram a possibilidade de reforçar as condições de manutenção das outras duas, mas acabaram por decidir o seu abate de forma a "garantir a segurança das pessoas e bens".

Exterior da Igreja de S. Pedro, em Junho de 2005 e hoje
Foram-se então as palmeiras que estavam na frente da Igreja de S. Pedro, mas ficaram as de mais pequeno porte que existem ao lado da igreja. Quem conhecia a paisagem vai ter de se habituar a um novo quadro, a uma diferente moldura.

terça-feira, 17 de julho de 2007

No "Correio de Setúbal" de hoje

DIÁRIO DA AUTO-ESTIMA – 63
Bénard da Costa I – O discurso que João Bénard da Costa fez em Setúbal em 10 de Junho calou fundo nas pessoas que à terra estão ligadas. Dois exemplos serão suficientes para o comprovar: o trissemanário O Setubalense, três dias depois, reproduzia a totalidade do discurso e, na primeira página, caracterizava-o, dizendo que “emocionou” Setúbal. Uns dias mais e, na sessão pública de Câmara, o vereador Paulo Valdez propôs que o discurso fosse divulgado nas escolas, tendo a Presidente de Câmara prometido a publicação do texto no Boletim Municipal.
Bénard da Costa II – O que terá emocionado as pessoas terá sido a apologia de Setúbal que Bénard da Costa incutiu à sua mensagem, numa prosa fundamentada na história e na cultura e no lugar que Setúbal ocupa nas duas. Mas esta peça serviu também para advertir o público, quer porque acentua “a atenção que não é costume dedicar” a Setúbal, quer porque, “nesta cidade, que viveu de conservantes, de conservas e de conservações, só a memória se não conservou”.
Bénard da Costa III – Quando são publicados textos sobre a história de Setúbal (falo, declarando interesse, por ser autor de vários textos e livros de história local), a imprensa regional quase sempre se limita a anunciar a sessão de apresentação pública. Depois, aquela que poderia ser a sua função de divulgar as obras fica no esquecimento, por norma. Este “apagamento”, que será involuntário, acontece mesmo no Guia de Eventos (de que já saíram 33 números) promovido pela autarquia, que, em cada edição, apresenta um livro – paradoxal é que só uma vez foi apresentado um livro ligado a Setúbal (primeiro volume da obra de Bocage), antes sendo dada a preferência à vida editorial comercial, princípio que grassa na maioria das agendas culturais das Câmaras, de resto.
Bénard da Costa IV – No discurso, Bénard da Costa referiu não conhecer quem tenha lido o Afonso Africano do setubalense Vasco Mouzinho de Quebedo. Pois bem: em 1999, Manuel dos Santos Rodrigues fez a sua tese de doutoramento sobre essa obra e sobre a biografia de Quebedo. A Câmara Municipal de Setúbal lançou, em 2002, uma subscrição pública para a edição dessa obra de investigação, que ainda não saiu. Compreende-se a dificuldade económica, mas dificilmente se aceita este atraso que ajuda ao esquecimento. Oxalá a mensagem de Bénard da Costa não tenha servido apenas para um momento muito curto, mas para Setúbal se elevar em termos da sua história e da sua identidade!

Sebastião da Gama e o futebol

Não sei o que é que Sebastião da Gama pensava sobre o futebol. Sabe-se que gostava das actividades ao ar livre ou não tivesse ele sido um amante da serra da Arrábida… Sabe-se que foi capaz de interligar o campismo e a poesia, como se pode ver num dos seus escritos (cf. O Segredo é Amar).
Versos seus são chamados para as mais diversas situações e, desta vez, o futebol não escapou.
Informou o Jornal de Notícias de domingo que, no dia anterior, Lourenço Pinto foi empossado como presidente da Associação de Futebol do Porto. No seu discurso de início de mandato, citou Sebastião da Gama e o seu “Pelo sonho é que vamos” a propósito das preocupações com a juventude, acrescentando que “uma das nossas preocupações é prestar atenção e prevenir os desvios dos tempos actuais”, porque, “mais do que incluir, impõe-se, através da prática desportiva, prevenir a sucessão de comportamentos desviantes entre a juventude”.
Bem interessante se torna esta inserção de Sebastião da Gama no discurso, porque sonho é o que vai faltando no futebol português para lá do que é esperar sempre ganhar. Que o digam as permanentes tricas entre dirigentes e clubes, que o digam os comportamentos recentes em jogo no Canadá… Podem ser tudo menos sonho; e, no entanto, é por aí que temos andado!

domingo, 15 de julho de 2007

Cinco livros - considerações e convites

As "dicas" sobre os "cinco livros" vieram de uma proposta de José Teófilo Duarte, que terá começado por ser de um autor de blog que escreveu sobre cinco livros e depois convidou cinco outros autores de blog para cada qual escrever sobre cinco livros e assim sucessivamente... Como achei a ideia interessante, aderi e agradeço ao José Teófilo Duarte o ter-me interpelado.
Agora, lanço eu os convites para a Céu Couto, para a Teresa Lopes, para o Nuno Sousa, para o João Aldeia e para o Miguel Castelo Branco entrarem nessa rede, se assim o entenderem!

Cinco livros - o(s) quinto(s)

É lapaliciano dizer que as guerras evoluíram na forma de serem concebidas e de serem realizadas. Mas uma questão que raramente vem à tona é a da experiência dos guerreiros (ou dos combatentes, como se queira), ainda que a ficção e o cinema com frequência a elejam como motivo. Ernst Jünger (1895-1998) esteve nas trincheiras da “frente” da I Grande Guerra (1914-1918) pelo lado alemão, tendo sido ferido em combate muitas vezes (duas dezenas de cicatrizes) mas sempre regressando às linhas.
Em 1922, publicou Der Kampf als inneres Erlebnis, recentemente traduzido para português sob o título A Guerra como Experiência Interior (Lisboa: Ulisseia, 2005). É um escrito que enaltece a memória da guerra, a reflexão sobre as memórias, questionando e explicando os homens, as atitudes, esse assumir cada vez mais completo e feito de forma imperceptível do que é estar-se dentro de uma guerra, fazendo-a. A linguagem usada, sem ser para contar histórias, não esquece essa marca da escrita da guerra, com um vocabulário próprio (logo a partir do primeiro parágrafo do “Preâmbulo”) que toma como referente a destruição e invoca as vivências na trincheira perante o assalto do fogo, das armas, da guerra na sua visão mais próxima. Não foi por acaso que o anterior livro de Jünger sobre a sua experiência nesse conflito se chamou Tempestades de Aço (1920)!...
Os títulos dos capítulos deste A Guerra como Experiência Interior são, de resto, lacónicos na quantidade de palavras, mas expressivos na mensagem, quase sendo propostos ao leitor como se no meio da guerra estivesse, em “flashes” de destruição: “Sangue”, “Horror”, “Trincheira”, “Bravura”, “Fogo”, “Angústia”, para só citar alguns.
A literatura portuguesa sobre a I Grande Guerra existe e o leitor sempre poderá ler Jaime Cortesão, nas suas Memórias da Grande Guerra (Porto: Renascença Portuguesa, 1919), ao mesmo tempo que lê Jünger, mesmo porque são duas experiências da “frente" e da trincheira, uma de cada lado da “no man’s land”! Se a curiosidade nos levar a questionar quanto à origem da guerra, bem podemos ainda seguir a correspondência entre Albert Einstein (1879-1955) e Sigmund Freud (1856-1939), datada de 1932, inserida em Porquê a Guerra?, que teve recente edição portuguesa (Mem Martins: Publicações Europa-América, 2007).

Cinco livros - o quarto

Retábulo das Matérias, de Pedro Tamen (n. 1934), constrói-se sobre o altar das palavras e dos títulos de livros de 45 anos de poesia, desde que, em 1956, saiu o Poema para todos os Dias. É, aliás, nesse primeiro livro que Tamen apresenta a escrita da poesia como elemento fixador e memorizador - "Ontem / (ainda ontem) / aconteciam verdadeiras coisas, / aconteciam muitas e sérias coisas. / E, agora, neste seco papel, / tudo volta, e eu vejo." Neste retábulo, torna-se evidente a força da palavra - "Não há montanhas se não há palavras" -, a capacidade de surpreender o leitor pela palavra intrometida - "Não penso, faço, / não estrada, sigo" -, o apelo aos jogos de sonoridades - "e o dia perto, porto, parto ferido" - e mesmo o engenho de (re)inventar a palavra - "aleluia-se um gesto".
Presentes também estão os temas do amor - "em ti não busco mais do que pensar-te" - e do tempo - "o tempo todo corre num cigarro, / no suor a cair, e no ficar." Interessantes são ainda as marcas de autor, num processo quase hitchcockiano de assinatura da obra, aqui e ali saltando para o poema - "formado em direito e em solidão" ou "Sentidos frios de pesadas frases / Ai Pedro, Pedro, tu que frases fazes?" Finalmente, assinalarei a subtileza na forma de apresentar, de visitar e de escrever a poesia: "Em segredo, como quem vai ao armário de si próprio, / rodo a fechadura (range) e abro."
Depois de reunir a obra completa neste Retábulo das Matérias (Lisboa: Gótica, 2001), de Pedro Tamen foi editado Analogia e Dedos (Lisboa: Oceanos, 2006), quando passavam os seus 50 anos de vida literária (em poesia).

sábado, 14 de julho de 2007

Cinco livros - o terceiro

Há um livro de Sebastião da Gama (1924-1952) que sempre me fascinou e de que nem sempre se fala – é O Segredo é Amar, publicação póstuma organizada por Matilde Rosa Araújo que teve estreia editorial em 1969. É um livro onde cabem textos em prosa multifacetados e de interesses diversos: o leitor ora se confronta com histórias, ora com páginas diarísticas, ora com notas de viagem (bem interessante o relato da visita a França, ainda que não narre toda a viagem, e, igualmente belo, “A Região dos Três Castelos”, o melhor que até hoje se escreveu sobre esta zona da Península de Setúbal em termos de divulgação e de proposta turística, ainda com actualidade), ora com artigos de jornal (aí havendo talvez dos mais afectuosos dizeres sobre Estremoz…), ora com textos de apreciação literária (agradável e de grande sensibilidade é o que se intitula “Lugar de Bocage na nossa Poesia de Amor”, que constituiu uma conferência, e não menos interessante é o texto “Apontamentos sobre a Poesia Social no Século XIX”, que constituiu a sua dissertação de licenciatura). Por aqui surgem experiências, estudo da poesia, capacidade de invento, simplicidade de escrita. E a gente percebe que Sebastião da Gama não era o poeta repentino e de acaso, mas um poeta em formação, sustentado no conhecimento das teorias e da tradição literária portuguesa.
O Segredo é Amar contém ainda aquele que foi o último texto que Sebastião da Gama escreveu – uma pequena crónica intitulada “Encarcerar a Asa”, datada de 25 de Janeiro de 1952 (o poeta faleceria 13 dias depois), de Estremoz. Apesar da doença que já o dominava, Sebastião da Gama não desperdiçou a oportunidade de louvar a Vida e os homens – “Os meus vizinhos têm um bicho numa gaiola. Um pintassilgo. Pois se eu andasse zangado com a Vida, que não ando (apesar de tanto mal que me tem feito, há tantas coisas boas que a Vida dá e me dá!), era por causa do pintassilgo que me reconciliaria com ela. Com ela e com os homens – se eu andasse zangado com os homens…

sexta-feira, 13 de julho de 2007

Cinco livros - o segundo

Conjunto dos dias experimentados entre 3 de Janeiro de 1932 e 10 de Dezembro de 1993 e projecto de escrita de autor levado a cabo com a minúcia do tempo e da vida, o Diário, de Miguel Torga (1907-1995), é uma das mais extensas práticas diarísticas que existe na escrita autobiográfica portuguesa. Tomando como máxima uma citação de Amiel ("Chaque jour nous laissons une partie de nous-mêmes en chemin"), Torga inscreveu nesta obra (publicada entre 1941 e 1993) os seus momentos de poesia, de dureza, de histórias, de afectos, de cenas, de trajectos, de retratos, de desabafos, de vivências, aí ressaltando o homem (na sua experiência e no seu encarar a vida) mas também o escritor (na forma como selecciona os momentos e como inscreve a vida na literatura). Entre o primeiro e o 16º volumes, há o itinerário entre dois poemas, ambos escritos em Coimbra: "Santo e senha", que inicia o volume inaugural (em 3 de Janeiro de 1932), abertura para o caminho - "Deixem passar quem vai na sua estrada" diz o primeiro verso - e "Requiem por mim", que finaliza o derradeiro volume (em 10 de Dezembro de 1993), ponto final na escrita - "Aproxima-se o fim. / (...) / Longo foi o caminho e desmedidos / Os sonhos que nele tive. / Mas ninguém vive / Contra as leis do destino."
Percurso de um narrador que se move entre S. Martinho da Anta e o Mundo, o Diário de Torga é uma das mais belas e interessantes obras que li, ainda na apresentação em 16 volumes, de folhas cujo corte exigia a participação do leitor, numa edição simples e sóbria [há edição recente do Diário em dois volumes].

Cinco livros - o primeiro

O José Teófilo Duarte deixou o convite [10 de Julho] para cinco livros. Os cinco de que direi são estes, mas poderiam ser outros, etc., etc., etc. Por agora, mostrarei Colóquio-Letras, uma publicação institucional no âmbito da literatura (da Fundação Calouste Gulbenkian). Os cinco últimos tomos (abrangendo os números 163, 164, 165, 166/167 e 168/169) são de consulta (e leituras) obrigatórias para quem goste de poesia, de ensaio sobre poesia, de David Mourão-Ferreira (1927-1996).
Os três primeiros submetem-se ao título de "Vozes da Poesia Europeia" e contêm traduções de poetas de um tempo entre Homero (séc. VIII aC) e Tomás Segovia (n. 1927), feitas por David Mourão-Ferreira; os dois tomos duplos registam os textos de David que serviram de roteiro ao programa televisivo "Imagens da Poesia Europeia", contendo ainda o último volume um dvd com "Imagens de David" (excertos de programas, de entrevistas, etc.).
No conjunto, são cerca de 1700 páginas com poesia e sobre poesia, sem a obrigatoriedade de ler de seguida, mas para consultar, para parar, para obter informação, para guardar, para intervalar. Habituados que estamos ao universo poético e romanesco de David Mourão-Ferreira, ficamos agora com a sua sensibilidade e saber de tradutor e com alguma da sua ensaística, lembrando o tom de tertúlia que ele punha nas conversas sobre literatura e sobre poesia, tratando-as como fazendo parte da sua vida, como sendo a sua vida.
Brevemente, falarei dos outros quatro e... passarei a bola a cinco convidados.

quinta-feira, 12 de julho de 2007

Amor é...

... construir o mapa do sentimento na escala 1:1!
... querer ver o que está depois da lomba!
... gostares que esteja no teu caminho!
(na estrada Viana do Alentejo - Vila Nova da Baronia, no início de Maio)

quarta-feira, 11 de julho de 2007

José Hermano Saraiva homenageado

José Hermano Saraiva vai ser homenageado em Palmela amanhã, em iniciativa promovida pelo Grupo dos Amigos do Concelho de Palmela (GACP), em cerimónia que se inicia pelas 20h30, com descerramento de lápide evocativa na sede da associação (R. Serpa Pinto, 22 - Palmela), e que prossegue na igreja de Santiago (no castelo) com sessão solene.
O GACP, que promove esta homenagem no dia do seu aniversário (foi criado em 12 de Julho de 1978), justifica a acção por ser "justo reconhecer esta personalidade de carácter, pelo trabalho que vem desenvolvendo ao longo de muitas décadas ao serviço da cultura" e por Palmela ser "a terra que escolheu para viver há cerca de 40 anos, sendo dela um embaixador onde quer que se encontre".
José Hermano Saraiva, associado do GACP (cujos órgãos sociais já integrou), nasceu em Leiria em 1919 e tem o nome ligado à política, ao ensino e à cultura portuguesa, quer através da obra publicada em livro, quer pelas sessões televisivas que evocam as histórias das terras e das gentes portuguesas desde há muito tempo. Da sua vasta bibliografia, destaque-se a obra de cunho autobiográfico em publicação por iniciativa do semanário Sol desde meados de Junho, Álbum de Memórias, em cuja apresentação Hermano Saraiva explica a razão de ser deste projecto: a proposta de um amigo, com um argumento quase imbatível - "É pedido com algum suporte lógico. Tenho consumido longos anos a contar a história dos outros. E não ficaria bem a quem tanto fala da vida alheia não deixar também alguma memória dos anos que viveu" (cf. vol. 1, "1ª e 2ª Décadas - Tempo Infantil e Paixões Adolescentes", pg. 5). A leitura desta escrita memorialística tem interesse por várias razões: porque ao leitor é permitido o encontro com a história de Portugal de quase um século, pelo menos naquilo em que essa história se cruzou com a personagem que a narra; porque esta obra ajuda a contrariar o hábito de não haver registos de memórias das personalidades envolvidas na história mais recente em Portugal; porque deste escrito não estão ausentes uma leitura pessoal dessa mesma história nem o poder comunicativo que tem caracterizado José Hermano Saraiva.

segunda-feira, 9 de julho de 2007

Pagelas Setubalenses - 2

A Ermida da Memória e Hildebrando
Hildebrando não é nome habitual nas latitudes latinas. Consta no título de um poema heróico germânico do século VIII, chegou, em tempos remotos, à Arrábida e fez lenda. De vez em quando, a sua história tem sido invocada e recriada conforme as épocas, alterando-se mesmo a caracterização da personagem que ora é um rico mercador, ora é apresentado como um frade. De comum entre os dois, existe o facto de ser originário do norte da Europa, chegado à Arrábida em virtude de uma tempestade que atirou o barco para esta região, devoto de uma imagem de Nossa Senhora e salvo de um naufrágio graças a essa mesma devoção.
O mais antigo documento conhecido respeitante a Hildebrando e à sua ligação à Arrábida data do século XIII e apresenta Hildebrando como fundador de um templo atribuído à ordem agostiniana.
Em 1638, Frei António da Purificação relatou a história desta personagem, dando a conhecer o mais antigo documento que se lhe refere: tendo a embarcação de um mercador inglês que vinha para Lisboa sido acometida por tempestade, entre a tripulação "vinha um religioso da nossa Ordem Eremítica chamado Haildebran, que devia vir por capelão da nau ou de um fidalgo que ali vinha por nome D.Bartolomeu. Trazia este religioso consigo uma devota imagem da Mãe de Deus para socorro das suas necessidades". Depois, quando o religioso foi orar junto da imagem, esta tinha desaparecido e o barco orientou-se para porto seguro por uma luz que, no dia seguinte, Hildebrando localizou como originária do sítio onde encontrou a sua imagem e onde, posteriormente, foi erigida uma capela, conhecida como Ermida da Memória, que ainda hoje se pode ver no Convento Velho, na Arrábida.
DOUTROS TEMPOS: "Estando um certo mercador, de nacionalidade inglesa, em perigo, no mar, por causa de uma tempestade que se levantara, e, como não lhe restasse qualquer esperança de salvação, com o navio, em que viajava, a baloiçar entre rochedos e as ondas do mar a encapelarem-se cada vez mais e a cair a noite escura, longe de qualquer auxílio humano e remédio, resolveu, com os restantes marinheiros, em atitude de súplice oração, refugiar-se junto de certa imagem devotíssima da gloriosa Virgem que consigo levava e, não a tendo podido encontrar de forma nenhuma, desiludido na sua esperança, nada mais esperava para além do naufrágio e de uma amarga morte. E eis que, quando menos o pensava, uma certa luz brilhou para si do lado do Monte Arábico. (…) Atribuindo isto à bondade e misericórdia divinas, o próprio mercador, divididas, primeiro, as mercadorias, nesse mesmo lugar onde se fixara a imagem, tratou de construir um eremitério e uma torre contígua a ele, na qual passou o resto de vida que teve sob o hábito de anacoreta, em extrema pobreza, perpétua oração e santidade."(Francisco Gonzaga, De Origine Seraphicae Religionis Franciscanae, 1587)

Entre Luísa Todi e as negativas em Matemática

Em 1967, a editorial Verbo tinha uma colecção para o público juvenil intitulada “Vidas Heróicas”, nela tendo sido publicado o livro A Vida Fascinante de Luísa Todi, de Maria Isabel Mendonça Soares, escritora nascida em Lisboa (1922). Uns anos passaram e, em meados da década de 70, a mesma editora tinha a colecção “Série 15”, cujo nº 31 se intitulava 15 Mulheres Célebres (1975), painel que continha um capítulo sobre a setubalense Luísa Todi (1753-1833), acompanhada noutros capítulos por personagens como Joana d’Arc, as irmãs Brontë, Anee Frank ou Edith Cavell. Era um conjunto de textos biográficos, em que a acção narrativa ganhava também pelo discurso directo entre as personagens, numa prática do biografismo inspirada pela construção romanesca. Dos quinze textos apresentados, apenas um estava assinado: era o que relatava sobre Luísa Todi, com a indicação de ser constituído por excertos do livro já referido de Maria Isabel Mendonça Soares.
Pelas mãos da mesma autora, a biografia da cantora lírica setubalense voltou agora aos escaparates livreiros, justamente a inaugurar mais uma colecção juvenil da editorial Verbo: a “Série 10”. O primeiro título, com ilustrações de Augusto Trigo, é 10 Grandes Portugueses (que boa e feliz paródia ao concurso de pouco alegre memória que a televisão pública promoveu há poucos meses!), nele constando as personagens Garcia de Orta, rainha Isabel, Joaquim Lopes, Marquesa de Alorna, Machado de Castro, Pedro Nunes, Princesa Joana, D. Sebastião, Públia Hortênsia e Luísa Todi. Todos os textos são de Maria Isabel Mendonça Soares, estando a biografia de Luísa Todi intitulada como “Uma Voz que encantou a Europa”.
O capítulo não relata toda a vida da personagem, mas apenas os seus primeiros 40 anos, exactamente aqueles que durou a construção da figura e o êxito do seu canto na Europa. Estes textos, cujo público imediato é a juventude, interessam mesmo por esse pormenor que é o da construção do sucesso com trabalho e com persistência e, ao longo das narrativas, vão aparecendo “dicas” que se podem considerar “chaves” para a vida: veja-se, por exemplo, o que escreve a autora a propósito da visita de Luísa Todi a Potsdam, onde Frederico II lhe ordenou que cantasse determinadas árias que tinham de ser estudadas em catorze dias: “Se Luísa Todi fosse uma artista pretensiosa como havia tantas outras, seria muito natural que fizesse uma cena e se recusasse a satisfazer aquela exigência; mas ela possuía uma coisa que se chama brio profissional e pensou que a ordem real bem podia transformar-se num desafio à sua competência.”
Quanto a estas “pedras mágicas” para o sucesso, valerá a pena lembrar como termina o capítulo dedicado a Pedro Nunes, matemático nascido em Alcácer do Sal (1502-1578): “Leitor amigo, tu que tiveste uma negativa em Matemática e afirmas que detestas semelhante disciplina, já pensaste que uma barragem e uma ponte assentam em algo mais do que blocos de cimento sobre postos ou lingotes de ferro aparafusados? Sabes, por exemplo, que na construção da Ponte 25 de Abril, de Lisboa, sobre o Tejo, só os cálculos matemáticos enchem nada menos de 100 volumes, num total de 10000 páginas e 4000 desenhos? Há qualquer coisa de fantástico nesta transformação de algarismos em realidades muito concretas e onde ao mesmo tempo os matemáticos descobrem verdadeira poesia!”
Estes textos de Maria Isabel Mendonça Soares interessam pelo assunto (a experiência e o exemplo do biografado), mas relevam também um conjunto de valores importantes para a formação e educação do público preferencial da colecção (e não só). Daí que possam constituir uma boa pista para o alargamento das leituras e para o trabalho (e prazer) que a leitura dá.

domingo, 8 de julho de 2007

Pacto Cívico

O semanário Expresso de ontem noticia sobre um “decálogo de boas maneiras” que vai ser motivo de uma campanha em Leiria, por iniciativa da respectiva Câmara Municipal. Os dez princípios do pacto merecem transcrição, tal como consta no resumo que o Expresso apresentou: “Não urino nas ruas; estaciono correctamente e respeito os peões; preservo o que é de todos; respeito o descanso nocturno; protejo os jardins e parques; mantenho as paredes limpas, sem pinturas nem graffitis; uso locais apropriados para fazer desporto; deposito bem o lixo e faço a reciclagem devida; recolho os dejectos do chão; se vou à praia, não levo o cão e deixo o areal sem lixo”.
A gente lê e faz o retrato do que existe e do que os sítios são. Em Leiria, como em muitos outros pontos, como em Setúbal, por exemplo. A gente lê e faz o retrato do que poderiam ser os sítios, do que poderia ser a convivência, se o respeito por nós e pelo outro fosse levado a sério. A gente lê e vê um triste auto-retrato de uma sociedade em que o civismo é posto em causa todos os dias. A gente lê e vê como os sítios poderiam ser diferentes e como as relações entre as pessoas, utentes desses mesmos lugares, poderiam ganhar em qualidade. Para tanto, bastaria…

quinta-feira, 5 de julho de 2007

Pagelas Setubalenses - 1

A Enfermaria de Frei Agostinho
No prédio com o nº 14 da Praça Teófilo Braga, em Setúbal, uma lápide diz: "Era aqui a enfermaria dos frades arrábidos onde, em 14 de Março de 1619, adormeceu no Senhor o mavioso poeta místico Frei Agostinho da Cruz / No ano do quarto centenário do seu nascimento a Câmara Municipal de Setúbal consagrou esta lápide à sua memória - 14.III.1940".
Nascido em Ponte da Barca, em 1540, Frei Agostinho da Cruz foi um dos dez irmãos de Diogo Bernardes, também poeta. Com vida promissora na corte, tornou-se franciscano e foi para o Convento de Santa Cruz de Sintra, onde viveu 45 anos sem querer títulos. Em 1605, retirou-se para a Arrábida, onde viveu até 1619, ano do falecimento na dita enfermaria. Conforme desejou num poema, foi sepultado na Arrábida: "Agora, que de todo despedido / Nesta serra d'Arrábida me vejo / De tudo, quanto mal tinha entendido. // Com mais quietação, livre desejo, / Nela quero cavar a sepultura, / Que não junto do Lima, nem do Tejo. // Aqui com mais suave compostura / Menos contradição, mais clara vista / Verei o Criador na criatura". Em vida, Frei Agostinho viu pouca obra editada: em 1596, um seu poema abria O Lima, de Diogo Bernardes, seu irmão; em 1597, nas Rimas Várias de Diogo Bernardes, foi também publicada uma elegia de Frei Agostinho sobre a morte do irmão; em 1618, no Tratado dos Passos, Frei Rodrigo de Deus inseriu dois sonetos e um epigrama do frade arrábido.
DOUTROS TEMPOS: “A Câmara Municipal da nossa cidade, atendendo às altas virtudes que ornavam o carácter de Frei Agostinho da Cruz, o frade cantor da Arrábida e que deu a sua alma a Deus na cidade de Setúbal, resolveu que à Rua da Cruz fosse dado o nome de Frei Agostinho da Cruz, perpetuando assim as suas excelsas virtudes. Por tal deliberação vê-se que o ilustre Presidente da Câmara tomou em consideração a ‘Carta Aberta’, que Oscar Paxeco nas colunas d’’O Setubalense’ endereçou há tempos a S. Exª, pelo que nos consideramos gratos em virtude de tão nobre proceder, acompanhando-o nesse gesto a ilustre vereação. Setúbal dá a Frei Agostinho da Cruz o mesmo que Pádua concedeu a Santo António: honras especiais a quem delas era merecedor. A Municipalidade setubalense honra-se por isso e a Cidade inteira aprovará por certo tão importante quanto justa deliberação. Frei Agostinho da Cruz, natural do Minho e que para Setúbal se transferiu muito novo e aqui morreu, dedicava à Arrábida, segundo lindíssimos sonetos que então escreveu em louvor da formosa serra, muito do seu amor de eremita.” (in O Setubalense, 4 de Março de 1940)

quarta-feira, 4 de julho de 2007

Onésimo Teotónio Almeida na "Culsete"

O convite chegou hoje e tenho que o partilhar. É que, lendo ou ouvindo Onésimo, o tempo esgota-se em fragmentos atlânticos, em castelos de vida, em viagens imaginárias sobre realidades quem nem sempre foram / são fantasias. É sempre bom ouvir este açoriano que se divide pelo mundo, entre o continente, as ilhas, a América, a escrita, a vida académica, as estórias e a visão crítica e bem disposta das personagens, das situações, do escrever, do existir.
Há mais uma oportunidade para quem queira e para quem possa, sobretudo para quem resida em Setúbal, de usufruir do convívio com Onésimo: é no dia 6 de Julho, pelas 21h30, na livraria "Culsete" (na Avenida 22 de Dezembro). O pretexto é a apresentação do seu livro Aventuras de um Nabogador e o convite aguça a curiosidade, mesmo de quem conhece o autor: "O novo livro de Onésimo Teotónio Almeida, Aventuras de um Nabogador, são estórias e mais estórias, contando-se umas às outras, em sanduíches carregadas de sabores. Aliás, ao bom estilo de conversa do autor, como sabem quantos com ele já conviveram."
No início dos anos 70, Onésimo Teotónio Almeida (n. 1946) viveu em Setúbal. A partir de 1972, passou a viver nos Estados Unidos, onde se doutorou na Brown University. Responsável pelo respectivo Departamento de Estudos Portugueses e Brasileiros, é autor, entre outros títulos, de Ah! Mònim dum Corisco!... (1978), (Sapa)teia Americana (1983), L(USA)lândia - A Décima Ilha (1987), Que Nome É Esse, ó Nésimo? - e Outros Advérbios de Dúvida (1994) e Onze Prosemas (e um Final Merencório) (2004), além de ser colaborador do JL e da revista Ler.

Sobre Calafate, um outro Eusébio

Um Eusébio nascido em Setúbal ficou mais conhecido pela sua profissão do que pelo nome de baptismo - falo de António Maria Eusébio (1819-1911), poeta popular, mais conhecido por "Calafate", nascido na Rua dos Marmelinhos, que hoje tem o nome do poeta. Também conhecido como "Cantador de Setúbal", este poeta legou-nos décimas que espelham a cidade, as gentes, os hábitos, o riso do seu tempo, num friso em que não faltam os retratos, a descrição das situações e as máximas proverbiais da vida. Crítico de muitas posturas municipais e das respectivas multas, repórter de verso imediato, deste poeta se transcreve o mote e a primeira décima de um poema sobre a construção de um lavadouro:

"Um tanque p'ra lavadouro
Um coreto e um tribunal
São três memórias que deixa
A nossa Câmara actual.

Os meus fracos pensamentos
A pouco podem chegar
Da minha pátria hei-de dar
Alguns esclarecimentos.
Há certos melhoramentos
Que valem mais que um tesouro.
Pois mais do que prata e ouro
Ou volumosas carteiras
Vale às pobres lavadeiras
Um tanque p'ra lavadouro."

O poema respeita a melhoramentos introduzidos pela Câmara presidida por António José Baptista, no final do séc. XIX, e vem transcrito em Versos do Cantador de Setúbal (Lisboa: Ulmeiro, 1985, vol. II), obra preparada por Rogério Claro.
Esta evocação vem a propósito da actividade que o Centro de Estudos Bocageanos está a promover na sua sede (na Avenida Luísa Todi, mesmo em frente ao "Quartel do 11"), constituída por uma exposição de peças relacionadas com Calafate e o seu tempo, organizada por esse coleccionador, pesquisador e amante de coisas de Setúbal (entre outras) que é Fernando Marcos. Intitulada "Calafate (António Maria Eusébio) - Memória Bibliográfica e Iconográfica - Setúbal e as suas Gentes nas Cantigas do Calafate", a exposição pode ser vista na tarde de hoje, uma vez que a sede do CEB está aberta para visitas nas tardes de quarta-feira. Sugestão que pode servir de convite! [Fotografia de Cília Costa]

terça-feira, 3 de julho de 2007

No "Correio de Setúbal" de hoje



DIÁRIO DA AUTO-ESTIMA – 62


10 DE JUNHO – Foi bom o 10 de Junho em Setúbal: sobretudo para a imagem construída para os que daqui não são nem aqui vivem, mas também para quem cá está, porque chamou a atenção para a possibilidade de esta ser uma cidade com coisas boas, pormenor tantas vezes esquecido, uma cidade diferente. Também nos levou a olhar para o desagrado com que frequentemente convivemos na nossa cidade, haja em vista que muitos espaços foram limpos, pintados, arranjados, assim se tomando consciência de que vamos vivendo com o que não queremos. Oxalá isso seja o “clic” para algumas mudanças! Obviamente, a imprensa nacional destacou apenas os discursos políticos, manipulados que andamos por esta prática de os políticos usarem os jornais e as televisões. Não deu o devido destaque à intervenção de Bénard da Costa, uma das peças mais bonitas que ouvi e li sobre a história de Setúbal, tal como não enfatizou o gesto de em Setúbal se manuscreverem Os Lusíadas, tal como passou ao lado de Bocage apesar de o Presidente ter deposto uma coroa junto à estátua, tal como informou sobre a inauguração do monumento a Sebastião da Gama quase apenas porque Azeitão ficava no caminho de Setúbal… Felizmente a imprensa local não afinou pelo mesmo diapasão! Mas o 10 de Junho foi bom! E Bénard da Costa, cheio de referências culturais nacionais e locais, situou Setúbal no mundo e registou aquela que tem sido a epopeia desta terra…
JOCOSO – As coisas andam mal em termos de riso e de opinião. O caso de uma pessoa exonerada do seu cargo em Vieira do Minho por não ter mandado retirar um comentário "jocoso" sobre o Ministro da Saúde que alguém tinha afixado é a evidência de que a governação anda sem sentido de humor e facilmente se deixa inflamar por servilismos e excessos de zelo de pequenos delatores que querem transformar-se em heróis (vá lá saber-se porquê...). Este princípio de abafamento da crítica através do riso conjuga-se com a prática da crispação que marca muitos momentos da governação. Só não se conjuga com o do próprio Ministro da Saúde, que muitas vezes tem respondido de forma irónica a questões que lhe são postas. Será que o tom jocoso só é válido para o poder? Contrariedade das contrariedades, porque o riso sempre elegeu o poder como um dos seus campos de experiência!...

segunda-feira, 2 de julho de 2007

Escuteiros

O mais recente monumento em Setúbal assinala os 100 anos do escutismo e foi inaugurado no Parque do Bonfim no sábado, promovido pela Junta Regional de Setúbal do Corpo Nacional de Escutas. É uma peça em metal segundo projecto de Miguel Garrana Amaral, que, em dado ângulo de visão, sugere a flor-de-lis, símbolo escutista.
Quando Baden Powell (1857-1941) publicou o Escutismo para Rapazes (1908), não terá pensado no que viria a ser o movimento escutista mundial. Certo é que o livro apaixonou vontades e ainda hoje se lê com gosto, não só com vantagens para quem queira seguir o movimento escuta, mas também para quem queira descobrir uma forma de conviver com a Natureza. Recordo o fascínio exercido pela leitura deste livro já há uns anos, de tal forma que, não tendo sido escuteiro, numa ida a Londres não pude deixar de visitar a Baden Powell House, ali para os lados de Kensington, na procura de mais informação sobre o homem, sobre o autor e sobre o movimento escuteiro mundial. Os lemas de vida de Powell ficaram expressos numa sua carta de despedida e valem um itinerário: “O estudo da natureza mostrará a vocês quão repleto de coisas belas e maravilhosas Deus fez o mundo para vocês gozarem. Alegrem-se com o que receberam e façam bom proveito disso. Olhem para o lado brilhante das coisas, ao invés do lado sombrio delas. Contudo, a melhor maneira de obter felicidade é proporcionar felicidade às outras pessoas. Tentem deixar este mundo um pouco melhor do que o encontraram e, quando chegar a vez de morrerem, possam morrer felizes com o sentimento de que, pelo menos, não desperdiçaram o tempo, mas sim fizeram o melhor que puderam.” É, aliás, o final desta mensagem que figura na base do monumento agora inaugurado.

Escuteiros de várias gerações presenciaram a inauguração e comovente foi ver o Chefe Joaquim (de Jesus de Oliveira), fundador de vários agrupamentos em Setúbal, com uma vida dedicada ao escutismo, presente e fardado, apesar das dificuldades da doença.