segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

Ficha de leitura (1) - Machado de Assis e as memórias de Cubas

Em 1881, Machado de Assis publicou Memórias póstumas de Brás Cubas (título surgido no ano anterior, “em pedaços”, na Revista Brasileira), romance por onde passa a vida de uma personagem excepcional, “um defunto autor, para quem a campa foi outro berço”. É a partir desta afirmação, logo no início do livro, que se constrói a lógica do título, depois de uma curtíssima reflexão sobre a escrita memorialística – “algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte”. O narrador tem consciência da subtileza das memórias e da arte que é construí-las, seguindo uma perspectiva cronológica ou um itinerário de permanente analepse, ainda que as memórias exijam sempre esse olhar para trás e existam por isso mesmo.
História de amores, com adultério à mistura (na personagem Virgília), de ideias, de ironia, com referências a Portugal (onde, de resto, o narrador cursou Direito e onde uma outra personagem, mais velha, o Vilaça, privou com Bocage no “Nicola” em tertúlia poética), estas Memórias mantêm uma frescura crítica (em relação à sociedade, à literatura, às ideias), num ritmo narrativo que desafia o leitor e o põe continuamente à prova pelas invectivas do narrador, num caminho de onde desapareceram os heróis e o homem se confronta com um destino por si construído.
A este romance não é alheia a estrutura das garrettianas Viagens na minha terra (de 1846, também antes saída em periódico, na Revista Universal Lisbonense, entre Junho de 1845 e Novembro de 1846), pela ideia da viagem (ainda que à roda da vida e de uma dada sociedade) e de um ritmo oscilante entre o comentário, a história, a intrusão do narrador (com inúmeras interrupções da narrativa) e a crítica das ideias.

Sublinhados de Memórias de Brás Cubas
GLÓRIA – “Um tio meu, cônego de prebenda inteira, costumava dizer que o amor da glória temporal era a perdição das almas, que só devem cobiçar a glória eterna. Ao que retorquia outro tio, oficial de um dos antigos terços de infantaria, que o amor da glória era a cousa mais verdadeiramente humana que há no homem, e, conseguintemente, a sua mais genuína feição.”
MÉTODO – “Isto de método, sendo, como é, uma cousa indispensável, todavia é melhor tê-lo sem gravata nem suspensórios, mas um pouco à fresca e à solta, como quem não se lhe dá da vizinha fronteira, nem do inspetor de quarteirão. É como a eloquência, que há uma genuína e vibrante, de uma arte natural e feiticeira, e outra tesa, engomada e chocha.”
OPINIÃO (DOS OUTROS) – “Na vida, o olhar da opinião, o contraste dos interesses, a luta das cobiças obrigam a gente a calar os trapos velhos, a disfarçar os rasgões e os remendos, a não estender ao mundo as revelações que faz à consciência; e o melhor da obrigação é quando, à força de embaçar os outros, embaça-se um homem a si mesmo, porque em tal caso, poupa-se o vexame, que é uma sensação penosa, e a hipocrisia, que é um vício hediondo.”
CONSCIÊNCIA – “O modo de compensar uma janela fechada é abrir outra, a fim de que a moral possa arejar continuamente a consciência.”
OLHOS (fechar os) – “Escrófula da vida, andrajo do passado, que me importa que existas, que molestes os olhos dos outros, se eu tenho dous palmos de um travesseiro divino, para fechar os olhos e dormir?”
BIBLIÓMANO – “Olhai: daqui a setenta anos, um sujeito magro, amarelo, grisalho, que não ama nenhuma outra coisa além dos livros, inclina-se sobre a página anterior, a ver se lhe descobre o despropósito; lê, relê, treslê, desengonça as palavras, saca uma sílaba, depois outra, mais outra, e as restantes, examina-as por dentro e por fora, por todos os lados, contra a luz, espaneja-as, esfrega-as no joelho, lava-as, e nada; não acha o despropósito. É um bibliómano. Não conhece o autor (…). Achou o volume, por acaso, no pardieiro de um alfarrabista. Comprou-o por duzentos réis. Indagou, pesquisou, esgaravatou, e veio a descobrir que era um exemplar único… Único! Vós que não só amais os livros, senão que padeceis a mania deles, vós sabeis mui bem o valor desta palavra, e adivinhais, portanto, as delícias do meu bibliómano. Ele rejeitaria a coro das Índias, o papado, todos os museus da Itália e da Holanda, se os houvesse de trocar por esse único exemplar (…), uma vez que fosse único. (…) Já prometeu a si mesmo escrever uma breve memória, na qual relate o achado do livro e a descoberta da sublimidade, se a houver por baixo daquela frase obscura. Ao cabo, não descobre nada e contenta-se com a posse. Fecha o livro, mira-o, remira-o, chega-se à janela e mostra-o ao sol. Um exemplar único! Nesse momento, passa-lhe por baixo da janela um César ou um Cromwell, a caminho do poder. Ele dá de ombros, fecha a janela, estira-se na rede e folheia o livro devagar, com amor, aos goles… Um exemplar único!”
VELHICE – “A velhice ridícula é, porventura, a mais triste e derradeira surpresa da natureza humana.”
ADULAR – “A adulação das mulheres não é a mesma coisa que a dos homens. Esta orça pela servilidade; a outra confunde-se com a afeição. As formas graciosamente curvas, a palavra doce, a mesma fraqueza física dão à ação lisonjeira da mulher, uma cor local, um aspecto legítimo. Não importa a idade do adulado; a mulher há de ter sempre para ele uns ares de mãe ou de irmã – ou ainda de enfermeira, outro ofício feminil, em que o mais hábil dos homens carecerá sempre de um quid, um fluido, alguma coisa.”
AVENTURA – “As aventuras são a parte torrencial e vertiginosa da vida, isto é, a excepção.”

TEMPO – “O tempo caleja a sensibilidade e oblitera a memória das coisas.”
CARTAS – “Leitor ignaro, se não guardas as cartas da juventude, não conhecerás um dia a filosofia das folhas velhas, não gostarás o prazer de ver-te, ao longe, na penumbra, com um chapéu de três bicos, botas de sete léguas e longas barbas assírias, a bailar ao som de uma gaita anacreôntica. Guarda as tuas cartas da juventude!”
VIDA – “A vida é o maior benefício do universo, e não há mendigo que não prefira a miséria à morte.”
EPITÁFIO – “Gosto dos epitáfios; eles são, entre a gente civilizada, uma expressão daquele pio e secreto egoísmo que induz o homem a arrancar à morte um farrapo ao menos da sombra que passou. Daí vem, talvez, a tristeza inconsolável dos que sabem os seus mortos na vala comum; parece-lhes que a podridão anónima os alcança a eles mesmos.”

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