quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

Padre António Vieira, 400 anos – Um louvor à Rainha Santa

Em Lisboa, em 6 de Fevereiro de 1608, passados hoje os 400 anos, nasceu António Vieira, nome que ficou conhecido na história religiosa e literária portuguesa, como jesuíta e autor de numerosos sermões e cartas. As biografias existem disponíveis, os estudos sobre a sua obra, a sua oratória, a sua teatralidade, também. Deixo aqui um excerto do Sermão da Rainha Santa Isabel, pregado em Roma, na Igreja dos Portugueses, em 1674. Nele está muito do que do estilo vieiriano se sabe: a organização impecável do discurso, os argumentos fortes, a chamada de atenção e a representação para os ouvintes, a incursão pela pluralidade de leituras, a defesa de princípios e de dogmas, a linguagem elaborada e convincente, o engenho e a arte do discurso, a pedagogia e o ensinamento para todos, especialmente para os grandes do mundo… Aqui deixo, pois, um excerto da obra que pretendeu enaltecer a rainha Isabel, casada com o rei Dinis, protagonista do conhecido “milagre das rosas”, que ganhou o cognome de Rainha Santa.

A uma Rainha duas vezes coroada, coroada na Terra e coroada no Céu, coroada com uma das coroas, que dá a fortuna, e coroada com aquela coroa que é sobre todas as fortunas, se dedica a solenidade deste dia. O mundo a conhece com o nome de Isabel; a nossa Pátria, que lhe não sabe outro nome, a venera com a antonomásia de Rainha Santa. Com este título, que excede todos os títulos, a canonizou em vida o pregão de suas obras; a este pregão se seguiram as vozes de seus vassalos; a estas vozes, a adoração, os altares, os aplausos do mundo. Rainha e Santa. Este será o argumento e estes os dois pólos do meu discurso.
(…)
Ora eu andei buscando no nosso Evangelho alguma coroa e, ainda que Cristo nunca multiplicou tantas semelhanças e tantos modos de adquiri o Reino do Céu em diversos estados e ofícios, o de rei não se acha ali. Achareis um lavrador, um mercante, um pescador, um letrado, mas rei não. E porquê? Não são personagens os reis que pudessem entrar também em uma parábola e autorizar muito a cena com a pompa e majestade da púrpura? Claro está que sim. E assim o fez Cristo muitas vezes. Mas vede o que dizem as parábolas dos reis (…): reis que fazem bodas, que fazem banquetes, que fazem guerras, que mandam exércitos, que conquistam reinos da Terra, isso achareis no Evangelho; mas reis que se empreguem em adquirir o Reino do Céu parece que não é ocupação de personagens tão grandes. Ao menos Cristo disse que o Reino do Céu era dos pequenos (…). Tais são o lavrador no campo, o mercador na praça, o pescador no mar, o letrado na banca e sobre o livro. Mas nas cortes, nos palácios, nos tronos de debaixo dos dosséis, que achareis? Bodas, banquetes, festas, comédias e, por cobiça ou ambição, exércitos, guerras, conquistas. Eis aqui porque as coroas não são boa mercadoria, ao menos muito arriscada para negociar o Reino do Céu. Reis e belicosos, reis e políticos, reis e deliciosos, quantos quiserdes; mas reis e santos, muito poucos. Vede-o nas Letras divinas, onde só se pode ver com certeza. De tantos reis quantos houve no Povo de Deus, só três achareis santos: David, Ezequias, Josias. Houve naquele tempo grande quantidade de santos, grande sucessão de reis; mas reis e santos, santidade e coroa? Três.
E, se é coisa tão dificultosa ser rei e santo, muito mais dificultoso é ser rainha e santa. No mesmo exemplo o temos. De todos os reis de Israel e Judá, três santos; de todas as rainhas, nenhuma.
(…)
Na majestade, na grandeza, no poder, na adoração e em todas as outras circunstâncias que acompanham as coroas, concorrem todos os contrários que pode ter a virtude e a santidade. E a virtude conservada entre os seus contrários é dobrada virtude. Ouvi uma das mais notáveis sentenças de Santo Agostinho: (…) Oiçam todas as idades o que nunca ouviram, diz Agostinho. E que hão-de ouvir? Fala do parto virginal e (…) diz Santo Agostinho que Maria Santíssima, concebendo, parindo e ficando Virgem, não só conservou, mas dobrou a virgindade (…) Se falara de qualquer outra virtude, não tinha dificuldade esta doutrina. Mas da virgindade, parece que não pode ser, porque a virgindade consiste em indivisível, é uma inteireza perfeita, incorrupta, intemerata, que não pode crescer nem minguar, nem admite mais ou menos. Pois se esta virtude soberana e angélica não admite diminuição nem aumento, se quando é sempre é igual e sempre a mesma, como diz S. Agostinho que cresceu, que se aumentou e que se dobrou e foi dobrada no parto da Virgem? Porque foi virtude que se conservou inteira entre os seus contrários. A concepção, o parto, o ter filho, o ser Mãe são os contrários da virgindade e conservar-se Maria Virgem, sendo juntamente Mãe, foi ser dobrada Virgem (…). Tais foram as virtudes de Isabel. O maior contrário e o maior inimigo da virtude é uma grande fortuna e quanto maior fortuna tanto maior inimigo. A humildade, o desprezo do mundo, a moderação, a abstinência, a pobreza voluntária, na outra gente, são simples virtudes; mas estas mesmas, com uma coroa na cabeça, com um ceptro na mão, debaixo de um dossel e assentadas em um trono, são dobradas virtudes, porque são virtudes juntas com os seus contrários. A humildade junta com a majestade é dobrada humildade; a moderação junta com o supremo poder é dobrada moderação; o desprezo do mundo junto com o mesmo mundo aos pés é dobrado desprezo do mundo; a pobreza com a riqueza, a abstinência com a abundância, a mortificação com o regalo, a modéstia com a lisonja, é dobrada pobreza, é dobrada abstinência, é dobrada mortificação, é dobrada modéstia, porque é cada uma delas não uma rosa entre os espinhos, mas uma sarça verde entre as chamas. E porque a nossa negociante do Céu sabia que debaixo do risco está a ganância, por isso teve por maior conveniência não deixar senão ajuntar a coroa com a virtude, não deixar senão ajuntar a majestade com a santidade, para que, sendo rainha, e juntamente santa, fosse também maior santa, porque rainha.
(…)
Não digo (pois nem Deus o manda) que as cabeças ou testas coroadas façam o que fez Carlos Quinto convencido de uma só parte deste exemplo, nem que renunciem e se despojem, como ele se despojou, das coroas. O que só digo, e diz Deus a todos os reis, é que aprendam a não as perder e se perder, mas a negociar com elas, e que, com o exemplo canonizado de Isabel, Rainha e Santa, entendam que também podem ser santos sem deixar de ser reis e que então serão maiores reis quando forem santos. Não consiste a negociação do reinar em acrescentar o círculo às coroas da Terra, que, maiores ou menores, todas acabam, mas em granjear e assegurar e amplificar com elas a que há-de durar para sempre. Assim negociou com as suas duas coroas a nossa negociante do Reino do Céu, agora maior, mais poderosa e mais verdadeira Rainha; assim está reinando e reinará para sempre; assim goza e gozará sem fim os lucros incomparáveis da sua prudente e venturosa negociação: na terra, enquanto durar o mundo, sobre os altares e no Céu, por toda a eternidade em sublime trono de glória.

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