domingo, 9 de março de 2008

Memória: António Matos Fortuna (1930-2008) - 1

Quando, há cerca de três semanas, parei o carro fora da casa de António Matos Fortuna e o visitei de surpresa, estava longe de pensar que aquele seria o nosso último encontro. Coisas da vida, eu sei. Mas, apesar de notar que, ao longo do último ano e meio, em cada vez que o via o achava mais decaído, mantive sempre a expectativa de um encontro a seguir. Combinámos mesmo um encontro para um almoço e conversa… Ficou pela combinação, assim brutalmente, com o telefonema recebido hoje, de um amigo comum, a comunicar o falecimento, na manhã de hoje, de António Matos Fortuna.
De repente, passou-me pela memória um conjunto de vivências que ele me proporcionou, para lá de, claro está, ter consentido na nossa amizade. A curiosidade pela história local, a boa disposição para falar das gentes da região, a cultura longa quando se entrava pelos domínios da história e da literatura clássica, o apego à terra que o viu nascer e que sempre distinguiu, o prazer de se dizer “montanhão” (natural da Quinta do Anjo, da encosta da serra), a labuta incansável em prol da descoberta de elementos para a história de Palmela (sobretudo numa altura em que nada ou quase nada existia a descoberto), o prazer que me deu ao convidar-me para prefaciar dois dos seus livros e para apresentar publicamente dois outros, as longas horas de conversa que mantivemos, os votos de “boas festas” arranjados de maneira original (com garrafa de vinho regional e rótulo pessoal, este da lavra de Matos Fortuna), o tom crítico perante os acontecimentos e relativamente aos textos, a desconfiança relativamente aos “cágados” (nisso me fazendo lembrar a mesma desconfiança que Luiz Pacheco tinha quanto aos “urubus”), os telefonemas súbitos por causa de dúvidas… enfim, difícil me é, de imediato, fazer um retrato de todas as vivências com Matos Fortuna, uma personagem a quem a história de Palmela sempre ficará a dever muito, a quem as ideias corriam mais depressa do que a vida e do que as palavras, para quem a amizade e uma formação humanista eram essenciais.
No último encontro que tivemos, ainda o ajudei a pôr em ordem os cadernos de um texto que publicara há anos, intitulado O drama da Quinta da Torre, saído no jornal O Distrito de Setúbal e, depois, preparado para livro que nunca terá chegado a circular encadernado. Mas, também nesse último encontro, fiquei com pena de já não o ver entusiasmado com um projecto que tivera em mãos (ainda uns meses antes com ele andava), que era o de reunir os textos de João Carlos Almeida Carvalho sobre Palmela, publicando-os em livro anotado.
Sinto-me privilegiado por me ter cruzado com António Matos Fortuna. Sobretudo pelo que com ele aprendi. E quero que essas imagens se mantenham na minha memória.

4 comentários:

Anónimo disse...

Partiu um Amigo de todos nós,que deixa tão boas memórias "no superlativo..."enfim,como só o "nosso" Dr.Fortuna nos dizia tão bem.

Anónimo disse...

A Aldeia da Quinta do Anjo hoje ficou mais pobre.

João Reis Ribeiro disse...

Subscrevo os dois comentários anteriores: as memórias "no grau superlativo" (como António Fortuna gostava de dizer ao agradecer ou ao mencionar os amigos) e a pobreza, pela ausência deste Homem. Ontem, no velório, um amigo comentava: "Se é verdade que quando morre um ancião é uma biblioteca que se vai, o que se poderá dizer no caso de António Fortuna?"

ac disse...

Quanto aprendi nos livros dele! Lidos com o entusiasmo e o encanto da descoberta.
Fica a obra e a memória do Homem.
Obrigado.