quinta-feira, 10 de abril de 2008

Sebastião da Gama e a Arrábida

A Arrábida desde cedo se revelou a Sebastião da Gama. Nascido em Azeitão, vila mesmo encostada à serra, para lá ele ia passear ainda em criança. A mãe registou e passou o testemunho de uma primeira quadra que o infante terá feito depois de um desses passeios, marcada pela linguagem infantil, mas contendo logo a que seria a principal linha temática do que viria a ser a sua poesia: “Fui passear / à serra da Arrábia / e encontrei / uma mulher grávia”.
A partir dos 14 anos, por razões de saúde, a sua vida teve de se concentrar na zona do Portinho da Arrábida. Ali, entre mar, céu e serra, Sebastião da Gama irá continuar a demandar e a desvendar os segredos da Arrábida, que passará por muitos dos seus poemas, que será calcorreada até à exaustão e que ocupará o título do primeiro dos seus livros, Serra-Mãe, saído em 1945.
Dois anos depois, em finais de Agosto de 1947 (tinha ele 23 anos), perante a provável destruição da Mata do Solitário, escreveu a jornais e a individualidades, clamando contra a degradação da serra e… teve eco. Já antes, em finais de 1942, aquando da construção da estrada pelo alto da serra, trouxera a defesa daquela paisagem para um dos seus poemas, “Tradição”, curiosamente nunca publicado em livro, mas que percorreu já revistas, e programas de divulgação de temática ecológica:

Os engenheiros vieram, mediram, olharam…
Havia árvores velhas…
Mandaram deitar abaixo
e os homens deitaram.

Sem lamentos, sem ais,
as árvores caíram…
Mas os engenheiros não puseram mais;
em seu lugar apenas
três cardos enfezados refloriram.

E os cardos vis são gritos de revolta
das sombras errantes pelo Ar;
das sombras que tinham por abrigos
aqueles freixos antigos
que o machado foi matar.

As sombras gritam, mas os engenheiros
Não põem freixos novos no lugar.


Para a Arrábida convidará muitos dos seus amigos de Lisboa, estudantes universitários como ele – David Mourão-Ferreira e Luís Filipe Lindley Cintra mergulharão também nos segredos e nas belezas da serra, levados pelo sentir de Sebastião da Gama. Ali conhecerá muita gente, a pretexto das suas deambulações pela serra e pelas praias e por causa da frequência da estalagem que a família instalara no forte, no Portinho. Entre outros, citem-se os encontros com Miguel Torga e com o rei Umberto de Itália.
Pela poesia de Sebastião da Gama passam muitas imagens da serra e do mar, como os exemplos demonstram:
tudo fala verdade ao pé do mar…” (in “Canção Inútil”)
rendas de Som o Mar foi levantando…” (in “Nocturno Primeiro”)
eu gosto de te ouvir, ó Vento!...” (in "Baixinho”)
a poesia da Serra adormecida…” (in “Serra-Mãe”)
vi / os poucos metros que vão / da minha Serra às Estrelas…” (in “Vida”)
a Serra é catedral / onde o órgão-Silêncio salmodia” (in “Oração da Tarde”)
Ó Serra (…) aonde a Primavera, quando chega, / já se encontra a si própria a esperar-se!” (in “Versos para eu dizer de joelhos”)
O mato cheira como dantes… Fala / comigo como dantes, reza, escuta…/ E o perfil da Montanha, como dantes, / adoça-se no escuro…” (in “Regresso à Montanha”)
Em 1949, produziu um dos mais lindos textos até hoje publicados sobre as terras em volta da Arrábida, A região dos três castelos, destinado a roteiro turístico por conta da Transportadora Setubalense, em que o leitor faz a viagem saindo de Cacilhas e passando por Sesimbra, Arrábida, Setúbal e Palmela, vivendo o deslumbramento das paisagens. Ainda nesse mesmo ano, a revista Flama publicou um texto seu que revelava aos leitores qual o fascínio que a serra sobre ele exercia: “O mais difícil não é ir à Arrábida (…). Difícil, difícil, é entendê-la: porque boas praias, boas sombras e boas vistas há-as em toda a parte (…); o que não há em toda a parte é a religiosidade que dá à Serra da Arrábida elevação e sentido.” Foi, aliás, esta sacralização que constituiu tema de conversa entre Sebastião da Gama e Teixeira de Pascoaes no encontro que, em Amarante, ambos tiveram em meados de Setembro de 1951 – segundo registo memorialístico do poeta azeitonense, publicado no Jornal do Barreiro nesse mesmo ano, Pascoaes ter-lhe-á dito: “A Arrábida é que é o altar da saudade; eu pu-lo no Marão, porque sou do Norte…” Depois, Sebastião da Gama conclui: “Tive pena que Pascoaes não tivesse nascido na Arrábida.”
[fotos: Glória Dias]

Sem comentários: