sábado, 10 de maio de 2008

Fernando Gandra - "O sossego como problema (peregrinatio ad loca utopica)"

Que espécie de livro é este que entra abruptamente no domínio das utopias, sem dizer ao que vem ou porque vem, fazendo o seu próprio percurso de inquietações, de pensamento e de citações (em que, deliberadamente, se misturam poetas com filósofos, clássicos com contemporâneos, músicos com pintores)?
Uma possível razão para este tipo de entrada é o seu primeiro parágrafo, que diz: “A linha do horizonte situa-se no ponto indefinido onde o céu e a terra se unem. É indefinido porque recua à medida que avançamos. A linha do horizonte só é fixa e acessível à distância.” E assim se vai construindo o percurso que visa entrar pelo horizonte, aproximar-se da utopia, ainda que sabendo que a distância que nos separa da utopia nunca se reduz… Sabemos que, neste caminhar, “a utopia coloca-nos entre a terra e o céu, ou, se quisermos, entre a razão civil e o mito escatológico (…). É uma revelação que registamos como improvável mas que, mesmo assim, põe em causa a coesão do nosso esmagador património de certezas. (…) É pura promessa, isto é, diálogo silencioso com o destino.
A ideia transmitida pelo subtítulo – “peregrinatio ad loca utopica”, resultante de um empréstimo de Jorge de Sena (Peregrinatio ad loca infecta, de 1969), que também já a recolhera de uma Peregrinatio ad loca sancta, composição de uma provável freira bracarense do século IV – é aquela que mais dirá sobre o objecto deste livro: a história das utopias, numa romagem pessoal, em que entram a filosofia, a literatura, a história, a música e a política.
Uma segunda linha de apresentação do livro advém da citação de Eduardo Lourenço, que abre o discurso – “O ensaísmo no seu risco mais profundo não tem objecto próprio, mas inventa o seu objecto”, acentuando o autor que o “risco” contém a duplicidade do sulco e do perigo, um e outro na emergência de se construírem com palavras ou de à palavra darem a primazia.
Este inventar, no sentido de criar ou recriar, é o que faz com que Fernando Gandra alinhe a sua escrita, ora pela discussão em género de ensaio, ora pela evocação e apelo à memória, ora pela incursão autobiográfica, ora pela construção poemática, ingredientes que, naturalmente, determinam que este livro não seja facilmente catalogável. A propósito do resumo que faz de um conto de Eça de Queirós, o autor é o primeiro a tentar justificar o carácter compósito desta obra, jogando na antecipação relativamente ao leitor: “é natural que se pergunte o que faz um texto literário tão longamente transcrito num trabalho que, embora transdisciplinar, se pretende sobretudo concebido no registo da filosofia”. E, depois, vem a resposta: “É que se a filosofia, como, aliás, a religião, tem a vocação de estipular verdades universais, tanto como a história tem a de estabelecer a coerência dos factos, é a arte, literária ou outra, que elucida como e porquê o homem comum vive essas verdades e esses factos, como e porquê integra nos seus comportamentos ordinários e (aparentemente) fugazes os universais que os transcendem e orientam. É a arte que estabelece a complexa relação entre a verdade e a vida, entre a essência e a existência, entre o eterno e o efémero.” Extrapolando… a arte permite esse encontro e aproximação do homem com a utopia. E daí o recurso a abundantes citações por onde perpassam os nomes de Fernando Pessoa, Camões, Almeida Faria, Rilke, Baudelaire, Aquilino, Beckett, Brecht, Almada Negreiros, Drummond, Unamuno, Platão, Tomás Moro, Victor Hugo, Miguel Torga, Goethe, Ruy Belo, Ovídio… E daí também o espaço para a música, na companhia de Beethoven, Vivaldi ou Stravinsky, ou para a pintura, nas telas de Gauguin, Picasso, Bellini…
A transdisciplinaridade é definida por Fernando Gandra como “uma espécie de sinestesia cognitiva que transgride as prescrições académicas porque dá espaço ao regime dos afectos”, um argumento mais para sustentar este seu livro, em que se cruza a filosofia com os gostos e os desgostos do mundo e da vida, em que se torna evidente a rejeição do academismo, demonstrada, por exemplo, no valor que à análise confere a experiência pessoal ou numa escrita em que o eu se não esconde ou, sobretudo, numa exposição em que as remissões bibliográficas não são inseridas e em que é mesmo recusada a necessidade de um índice remissivo, curiosamente com o argumento da liberdade – “aqui não há índice remissivo porque é quase só papel vadio, desprevenido”, diz, a fechar o livro. (...)
Que espécie de livro é este, então?
Para falar das utopias, Fernando Gandra parte, muitas vezes, de coisas simples, com que nos confrontamos no quotidiano, tais como: o adágio “água mole em pedra dura tanto dá até que fura”; a pergunta “porque fechamos os olhos e a boca aos que acabam de morrer?”; a questão da energia em que se apoiam as revoluções; os hinos nacionais, encarados como a imagem que um povo tem e quer de si; as lâmpadas sempre sujas, nas prisões e nas esquadras; a simultaneidade da existência dos “novos ricos” e da “pobreza envergonhada” na utopia do dinheiro; o valor de gestos como a “palavra de honra”; as intuições de género como aquela, feminina, de saber a importância do calar-se; a valorização de expressões como “muro de silêncio” ou aquela construção comparativa do “como se” ou outra, mais expectante, do “espero que”…
A saída [depois de se confrontar com Rousseau e a democracia, com Hegel e o absoluto à mistura com Beethoven, com Marx e os "ismos" comunismo e nazi-fascismo, com a utopia do Estado Novo] é pela utopia do silêncio, algo que já vinha anunciado no primeiro capítulo do livro, algo que suscita a “ambiguidade ontológica”, algo que “sabemos que existe, mas não sabemos bem em que consiste”.
No último capítulo, uma epopeia do silêncio, sabemos que, se absoluto, é “o último episódio de um curriculum” ou “o fim de um estado civil”, duas excelentes imagens que permitem ao homem ser a ponte entre o silêncio inicial (a “mudez pré-natal”) e a escuridão total onde “o silêncio não tem obstáculos”.
Sobre: Fernando Gandra. O sossego como problema (peregrinatio ad loca utopica). Lisboa: Fenda, 2008
[Excertos da apresentação da obra na noite de ontem, na Culsete, em Setúbal]

2 comentários:

Anónimo disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
José António Cunha disse...

Brilhante esta obra que revisito com frequência, de luminosa escrita. Memorável o capítulo sobre "A utopia segundo o Estado Novo". A obra, há muito esgotada, mereceria, sem dúvida, uma reedição.