terça-feira, 30 de setembro de 2008

Rostos (88)


Vendedoras (azulejos de 1940, da Fábrica Battistini, pintados por João Rodrigues),
no Mercado dos Lavradores, no Funchal

segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Em terras de Sua Majestade, sobre educação...

Jim Knight, Secretário de Estado da Educação do governo britânico, está em Portugal, onde veio para uma conferência intitulada “As Crianças no Centro da Educação - A reforma educativa em Inglaterra” e para se inteirar do Plano Tecnológico na Educação. No suplemento “P2” do Público de hoje, há uma curta entrevista em que se fala do papel da inspecção, da avaliação das escolas, dos rankings, das tecnologias na educação, do papel dos pais, das relações das escolas com as autarquias e de dificuldades várias. Transcrevo três recortes.
Ser professor – “Actualmente, a profissão de professor está na tabela das dez melhores, das mais reconhecidas. E muitos dos licenciados que saem do ensino superior querem seguir esta profissão. Em termos de recursos humanos, criamos a figura do assistente do professor. São pessoas com formação para trabalhar em sala de aula, o que liberta os docentes de algum trabalho mais burocrático, de maneira a que se dediquem apenas ao ensino, porque ficam com mais tempo para ensinar. Existem já 13 mil assistentes.
Matemática e Língua Materna – “A Matemática e o Inglês são as disciplinas onde os alunos têm maiores dificuldades. Aos 11 anos, há muitos alunos com dificuldades na leitura e na escrita, o que não pode ser.
Pais na Escola – “Também temos escolas que estão a ser construídas em parceria com o movimento cooperativo, onde os pais estão mais envolvidos na gestão das escolas. Mas os pais não querem criar escolas, poucos são os que o querem, os pais querem é que a escola que escolheram seja boa.

domingo, 28 de setembro de 2008

"Os Lusíadas" em mirandês

Ls Lusíadas an mirandés
Apuis de quaije cinco anhos de trabalho, acabou-se la sumana atrasada la traduçon de Ls Lusíadas an mirandés, feita por Fracisco Niebro. Essa traduçon ampeçou a ser publicada an janeiro de 2004, a la rezon de cinco stáncias por sumana, ne l Jornal Nordeste. La pregunta que eiqui pongo yá fui pula cierta puosta por outras pessonas: l que ye que lhieba ua pessona a fazer ua boubada destas ne l seclo XXI, i inda porriba nua lhéngua cumo l mirandés?L'eideia de traduzir l poema de Camões para mirandés fui, an purmeiro, agarrar las possiblidades que el le ouferece a la dibulgaçon de la lhéngua mirandesa, tornando-la mais coincida. Mas fui tamien l querer lhebar la lhéngua mirandesa por mares datrás nunca nabegados, fazendo-la passar pula dura pruoba que ye la de le dar boç a esse poema único, i cuido que se sal mui bien de l feito: ua lhéngua que lhuita cun sues andebles fuorças pa nun se deixar afogar ne ls mares amalgados an que ten de nabegar, dá-se bien cun esse poema que tamien tubo de ser salbo de las augas de l grande mar. Sendo Ls Lusíadas l maior poema d'amor de la lhiteratura pertuesa, l trabalho de l tradutor solo puode ser antendido cumo un ato de amor pulas sues dues lhénguas, l pertués i l mirandés, i dua grande proua por fazer parte de l pobo que las fala: ora, falar de amor i falar de boubadas bai a dar al mesmo. Al modo que l tiempo passa, Ls Lusíadas ban sendo lhebados na corriente de l riu de l squecimiento i esso ye ua einorme perda yá que ye na mimória que assenta l bibir dun pobo, que por eilha bince l tiempo, i esse ye l camino de l'eimortalidade tamien pa la lhéngua.
L nome de Camões i l sou poema resúmen, an muito, l'alma, la cultura i la lhiteratura dun pobo, questuma-se dezir, mas todo esso staba ancumpleto sin la traduçon de l poema para mirandés. Cumo pertueses, tamien ls mirandeses fázen parte antegrante de l heiroi coletibo de Ls Lusíadas. Quadra-le bien als mirandeses essa eipopeia adonde a la grandeza de ls feitos se cuntrapon la pequenheç de l reino, adonde la fuorça de buntade i la determinaçon puoden arrepassar las fraquezas - i esso nun ten nada a ber cun cunsidrar ls çcubrimientos cumo eidade d'ouro, que nun l son. Assi sendo, Ls Lusíadas nun puoden quedar na beneraçon dun grupo de specialistas, nin de lheitura pa ls mirandeses que fúrun oubrigados a lé-lo ne l ansino secundairo, ponendo-lo apuis de lhado para siempre. Tamien cula sue traduçon para mirandés Ls Lusíadas puoden ganhar nuobos lheitores que, de outro modo, nunca chegarien até el.Puls feitos que diç, pul camino que apunta, pula sue grandeza cumo poema, Ls Lusíadas son un património de todos ls pertueses i de la houmanidade. Assi, ua nuoba lhéngua an que ye traduzido ben a cuntinar essa eideia, ajuntando-se a las muitas an que l poema yá fui i cuntina a ser traduzido. Dende que esta traduçon tamien seia ua houmenaige al grande poeta, un bózio contra l squecimiento, ua afirmaçon de la sue modernidade, amostrando cumo la globalizaçon nun ten sentido fuora de l'andebidualidade de ls pobos, por bien pequeinhos que séian.
Amadeu Ferreira, in Público, 28.Setembro.2008

sábado, 27 de setembro de 2008

Máximas em mínimas (34)

Respeito
"Dantes, respeitava-se tanto o regedor como o cantoneiro. Hoje, quem respeita quem? Se os desejos de cada um fossem nobres e houvesse lealdade na língua, o entendimento seria bem melhor..."
José Rego. A Aurora do Lima. 24 de Setembro de 2008.

Hoje, no "Correio de Setúbal"

Diário da Auto-Estima – 86
Emigrante – Há uns anos – não muitos para que já não haja memória – os emigrantes portugueses no estrangeiro eram desejados e havia uma quase veneração, pelo menos em algumas ocasiões. Em causa estava a chegada de divisas a Portugal, bem como o facto de serem menos uns tantos a inflacionar o número do desemprego. Foi-lhes consagrado o direito de participarem nas eleições portuguesas através do voto, ainda que a participação nem sempre se tenha pautado por números elevados (mas também, entre aqueles que não são emigrantes e que por cá vão estando, a participação tem vindo a baixar de forma nada adormecida). O Partido Socialista descobriu agora que os votos por correspondência oriundos dos círculos da emigração têm andado ao sabor da “chapelada”, para usar o argumento de um dirigente. E, por isso, há que acabar com o voto por correspondência, diz o partido. Cada qual sabe do que fala e seria bom lembrar que esse vício da “chapelada” foi coisa que, durante muito tempo, os governos andaram a fazer perante os emigrantes… Afinal, o que estará em causa? O facto de o Partido Socialista não conseguir penetrar nos círculos da emigração? O facto de os emigrantes terem mais a ver com o país que os adoptou do que com aquele que os gerou? O facto de os emigrantes não gostarem de correspondência? A gente começa a pensar e vê como o “politicamente correcto” é a metáfora da falsidade em muitos dos casos e como pode ser fácil restringir direitos sob a capa de argumentos mais ou menos construídos, mas muito pouco naturais. O que se teme é esta falta de reconhecimento publicada contra os emigrantes, quase num refazer da História, ainda que tendencioso. O que se teme é que tudo isto possa ser consequência de uma sociedade que se quer fazer crer que existe, mas que, na verdade, existe apenas forjada para a política, muitas vezes distante dos cidadãos, cada vez mais distante dos cidadãos.
Português – A língua portuguesa entrou nos corredores da ONU pela voz do Presidente da República, também presidente em exercício da CPLP, com tradução simultânea para todos os presentes. Pode não ser um enorme passo para a difusão da língua portuguesa, mas é, com certeza, um bom contributo para que a nossa língua seja olhada com a importância que lhe devemos dar. Sim, que lhe devemos dar, para que os outros lha dêem, que será uma forma de também o país e os portugueses serem vistos num mais justo lugar no mundo. Iniciativas do género podem valer mais do que acordos ortográficos nascidos como o que recentemente andou em discussão e que… vai vigorando até um dia se afirmar.
Sebastião Fortuna – É da Quinta do Anjo, tem longo currículo no mundo do sonho e da corrida atrás de ideais, fundou um Centro de Artes e Ofícios ligado a profissões em vias de extinção, tem exercido ao longo da vida as mais variadas funções e ofícios, é incapaz de estar parado e vai, hoje, sábado, inaugurar a sua exposição de pintura na Igreja de S. João, em Palmela, intitulada “Sonhar é preciso”, que poderá ser vista até 5 de Outubro. A ver e a partilhar.

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

Para a família vitoriana

O Vitória Futebol Clube lançou uma Caderneta Oficial alusiva à época de 2008/2009, em colecção de centena e meia de cromos que vão muito para lá do acostumado nestas lides de colecções: é que esta Caderneta do clube sadino pretende também contar um pouco da história da instituição, avivar alguma(s) memória(s), apresentar quem faz o clube hoje. Pelos cromos passam os membros da Direcção, os funcionários, a massa associativa e os adeptos, a equipa desta época, algumas das taças que o clube conquistou, os Presidentes da Direcção e alguns momentos da história.
Nas palavras do actual Presidente da Direcção, Luís Lourenço, esta Caderneta “é uma forma diferente de nos mostrarmos, de expormos a nossa actividade, de nos financiarmos, de mostrar que somos muitos e dispostos a deixar a nossa marca na Cidade que amamos”.
A obra conta, pois, um longo percurso iniciado em Novembro de 1910. Cheio de história. Cheio de verde. Cheio de Setúbal. Em que não contam só os ídolos, mas também todos os heróis que, no quotidiano, vão fazendo o clube.

Máximas em mínimas (33)

"Todo o tempo é de aprender
desde a hora do nascer
até que a vida se acabe."
António Gedeão. História breve da Lua (1981).

Claro que, neste caso, a culpa não morre solteira...

É o fim da segunda semana de aulas. Na livraria, há pessoas que esperam ser atendidas com listas de manuais escolares na mão, outras com senhas de encomendas já feitas e com atendimento em espera.
- Peço desculpa, mas esse livro ainda não chegou. Estamos à espera...
- Não chegou? É a terceira vez que cá venho por ele e ainda não está cá? Isto é que é bonito!... Se o professor ralhar por a criança não ter livro, vou lá... Então já viram? A culpa é do professor. Porque não mandou comprar outro livro? Nem sabem o que hão-de mandar comprar... Está bonito!
E saiu porta fora, com a indignação estampada contra o facto de o livro ainda não ter chegado e contra o facto de o professor ter adoptado aquele manual.
Para quem haviam de sobrar as culpas depois de toda a triste desvalorização da profissão docente que tem sido feita?

terça-feira, 23 de setembro de 2008

Rostos (87)

Monumento ao Emigrante Freixiense, em Freixo da Serra (Gouveia)
Nas inscrições registadas no monumento consta como tendo o mesmo sido oferta do Padre Jorge Gouveia e há espaço para uma quadra: "A Terra Mãe nunca te esqueceu, / Sempre dolente por ti sofreu, / À Virgem do Ó intercedeu / Para o melhor futuro teu."

Entre as "chapeladas" e a necessidade do chapéu...

Tem havido justificações ridículas para retirar o voto por correspondência aos emigrantes. Questões de uma sociedade que joga no "politicamente correcto" que, afinal, nem sempre é tão correcto quanto isso, pelo que significa de desrespeito. Transcrevo a opinião de Helena Matos, no Público de hoje, intitulada "Os emigrantes e a chapelada", por me parecer que é um retrato do que move esta engrenagem. Algo impiedoso, mas verdadeiro...
«O PS decidiu recuperar a figura do emigrante reaccionário e atrasado e foi buscar ao armário o fantasma da chapelada. Os emigrantes têm sido o constante embaraço das elites em Portugal. Qualquer falante do português sabe que expressões como "música de emigrante", "casa de emigrante" ou "estilo de emigrante" estão longe de ser positivas em Portugal. Obviamente, se estivermos a falar dos emigrantes portugueses. Vimos quilómetros de filmes com os dramas da emigração italiana, gastámos quilos de lenços de papel a limpar as lágrimas com as atribuladas viagens dos esfomeados irlandeses em busca duma terra menos madrasta, mas, no que respeita aos emigrantes portugueses, a primeira vez que os vimos fora do neo-realismo das reportagens e do paternalismo folclórico dos programas ditos sobre emigrantes foi no filme Aquele Querido Mês de Agosto (a ver antes que seja tarde). Até agora, o máximo que a pátria lhes concede sem torcer muito o nariz são as celebrações oficiais da diáspora - designação que os torna mediática e culturalmente aceitáveis. Nos restantes dias espera-se que lá fora não dêem nas vistas e cá dentro não nos causem embaraços.
É verdade que durante décadas a pátria lhes agradeceu as divisas, mas também é verdade que se ria quando ouvia as canções "pirosas" em que eles davam conta das saudades dum país que não só não lhes dera nada como ainda menos lhes perdoava o andarem sempre ao contrário da História anunciada: quando a I República, o Estado Novo e a Revolução clamavam futuros radiosos, eles, indiferentes a tais desígnios, embarcavam clandestinos e passavam a fronteira a salto. E não se julgue que, uma vez lá fora, adquiriam maior perspicácia política: em França, no Maio de 1968, os emigrantes portugueses não só não viram libertação alguma como em vez de darem o braço a Cohn-Bendit meteram, apavorados, as mulheres e os filhos nos comboios com destino a Santa Apolónia. Quarenta anos depois, na Venezuela, continuam politicamente ignorantes, pois não percebem que os raptos e assassínios de que são vítimas não são propriamente crimes, mas sim um exotismo, próprio dum país que compra computadores exóticos e que é chefiado por um presidente também ele exótico, como bem explicou o ministro português dos Negócios Estrangeiros. Não admira que com esta obstinação em andar sempre contra aquilo que constitui o "deve ser" instituído na pátria, os emigrantes tenham sido sempre vistos como umas criaturas meio boçais a quem a falta de cultura tornava vítimas da ganância de ganhar mais, sendo que quem assim os retratava esquecia que eles aqui não ganhavam nada. Em Setembro de 1974, houve até um secretário de Estado da Emigração que os quis libertar das garras do capitalismo e consciencializar, implementando um programa para o seu retorno a Portugal. Como é óbvio, os emigrantes não se quiseram consciencializar e continuaram a fundar associações de transmontanos na Suíça, designação que em si mesma comporta uma espécie de contradição insanável entre os termos, mas que revela uma extraordinária sabedoria de vida.
Mas eis que, em 2008, o Governo de José Sócrates resolve intervir neste calcanhar de Aquiles nacional e particular calcanhar do PS, pois não só este partido experimenta frequentes dificuldades em captar o voto dos emigrantes como sobretudo nem sempre anda nas melhores companhias nos círculos da emigração. (Veja-se o caso do Brasil, onde investigações à corrupção dos casinos clandestinos levaram a figuras como Licínio Soares Bastos, que, segundo a imprensa, é um dos principais financiadores do PS naquele país). Para mudar a lei, o PS recupera a figura do emigrante reaccionário e atrasado e não hesita em ir buscar ao armário da agitprop o fantasma da chapelada. O voto dos emigrantes é susceptível de ser objecto de "chapeladas" - explicou Vasco Franco. Nem sei como o PS demorou três décadas a descobrir isso, pois só por "chapelada" se pode explicar que os emigrantes ao longo de todos estes anos não tenham votado esmagadoramente no PS e dado votos ao PCP, que apoia o PS nesta tentativa de tornar impraticável o voto dos emigrantes. Afinal, merecerão votar umas criaturas que há mais de um século se recusam a fazer de figurantes nos grandes discursos dos grandes dirigentes da pátria e acreditaram simplesmente que podiam, lá longe, mudar a sua vida? E que, como se tal não fosse pouco, ainda teimam voltar, a cada Verão, a esse país que só existe na memória deles para passar Aquele Querido Mês de Agosto?»

Sebastião Fortuna e o gosto de sonhar

Conheço o Sebastião Fortuna há pouco mais de 20 anos. Vi-o pela primeira vez naquele que é agora o Centro de Artes e Ofícios Fortuna, em Quinta do Anjo, por si sonhado, criado e alimentado durante muitos anos. Aliás, essa é uma das características de Sebastião – correr à frente do que sonha, como se o sonho tivesse que o seguir ou… não se sabendo muito bem quem vai à frente, se o sonhador, se o sonho ele mesmo!
O Sebastião cativou-me no primeiro encontro. Pela forma como as suas mãos trabalhavam, modelando barro ou acariciando peças. Pela maneira como me convidou a entrar no sonho das suas aventuras. Pela disponibilidade que exerceu para mostrar, explicar, fazer. Por essa ginástica de uma imaginação sempre alerta, continuamente a trabalhar. Por um certo desprezo pelos valores materiais. Pela conjugação do homem com o sonho. Afinal, Sebastião Fortuna, nas artes plásticas, “cantava a mesma e não menos bela poesia que Sebastião da Gama”, tal como uns anos depois escreveu D. Manuel Martins, bispo de Setúbal (A Seara, Março.1992).
Muitas vezes fui passando pelo Centro de Artes e Ofícios, ouvindo-lhe os desabafos. Umas vezes, ia lá apenas para ver, para estar. Noutras, levava os filhos e amigos. Houve uma vez em que lá levei o Fernando Pessa, convidado que tinha sido para vir à minha escola falar com os alunos sobre jornalismo. Na sabedoria dos seus 90 e picos anos, que já tinha na altura, Fernando Pessa ficou entusiasmado com o trabalho que Sebastião Fortuna levava a cabo… e admirou todo o trabalho com uma fina sensibilidade e alegria.

As coisas não correram como Sebastião sonhara neste Centro de Artes e Ofícios e partiu para outra, descobrindo-se e alimentando uma veia por que já velejara há anos – a pintura. Agora, no próximo fim-de-semana, na Igreja de S. João, em Palmela, vai expor sob o título “Sonhar é preciso”. Vai ser às 16h30. A sugestão aqui fica, juntamente com reprodução de dois quadros, em fotografias tiradas do catálogo que acompanhará a exposição.

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Ainda sobre os 500 euros do dia 12 de Setembro

Na "Pública" de ontem, inserida no Público, Daniel Sampaio assinou crónica com o título "500 euros". Eis a parte final.
«(...) Quanto ao prémio de 500 euros (uma quantia conhecida por ser o símbolo da precariedade do trabalho juvenil...), penso o seguinte: concordo que se introduza a questão do mérito, porque a ideia de uma "escola de afectos" - onde escrever com erros ou errar nas contas não tinha importância - não faz sentido, mas é preciso ser prudente quando se trabalha com jovens. Que valores se estão a transmitir? Que significa ser o "melhor" numa escola com várias culturas? As oportunidades para chegar ao topo foram comparáveis? É de pressupor que o estudante dos 500 euros seja um bom aluno, com razoável apoio familiar e casa organizada, e surja integrado numa turma onde a indisciplina não é a regra. O problema é que a escola não é uma empresa, que premeia com finalidade o operário que "produz" mais: é uma organização complexa onde diversas variáveis contribuem (ou não) para o êxito. Por isso, a atribuição de prémios deveria pressupor uma avaliação criteriosa do trajecto do estudante, a cargo do conselho pedagógico, com particular atenção ao esforço realizado, às condições de partida e ao progresso obtido, ao empenhamento do aluno na melhoria da escola e até à sua capacidade de contribuir para um bom relacionamento interpessoal na turma.
Ninguém melhor do que os professores saberá distinguir "o melhor", numa perspectiva de valorização das qualidades pessoais do aluno: para além do "sucesso" numérico, os prémios deveriam assinalar o rigor, a exigência pessoal, o sentido ético no relacionamento, o empenhamento em projectos colectivos, o que se poderia conseguir através do preenchimento, por um júri, de uma série de quesitos conhecidos com antecedência.
Ao distribuir cheques de 500 euros, o Governo premeia o "produto", em vez de incentivar a pessoa. Estimula uma competição onde as regras não são iguais à partida. Gratifica o número do "resultado", sem olhar para o percurso. Em derradeira análise, elogia quem parece cortar a meta em primeiro lugar, sem olhar para os meios de que se serviu o "vencedor", nem para as vicissitudes do percurso dos "vencidos". E chamam a isto "educar"...»

Rostos (86) [do cinema (II)]

Humphrey Bogart e Ingrid Bergman, em "Casablanca" (Pêra, FIESA, 2008)

sábado, 20 de setembro de 2008

Alice Vieira - As opiniões dos 13 anos

O que pode levar a que surja um diário de uma adolescente? Esta pergunta não tinha passado pela mente de Inês Tavares, que pensava receber um i-pod como prenda de aniversário, mas a avó trocou-lhe as voltas ao oferecer-lhe um “diário” e justificando: “Isto é para escreveres e guardares os teus segredos”. E Inês começou a escrever um diário, ainda que sem data, mas em 19 capítulos, que abrangeram o período de um ano, entre Janeiro, mês do seu aniversário, e o Natal, época de família, altura em que o volume do “diário” acabou.
É o que se passa em A vida nas palavras de Inês Tavares (Alfragide: Caminho, 2008), obra que tem o subtítulo de “Diário de quem só quer a paz no mundo e o Brad Pitt”, último livro de Alice Vieira. Por lá passa a vida encarada do alto dos 13 anos, com muitas opiniões resultantes da procura e afirmação da identidade, das preocupações juvenis, do ritmo da escola e das vivências com os amigos, da família, da sociedade e das suas convenções, das referências contemporâneas, da alucinação consumista. É uma história próxima no tempo, nossa contemporânea, que vai tendo marcas de acontecimentos recentes, seja pelos concertos, seja pelas opiniões, seja pelos heróis, seja pelos hábitos, seja pelos pequenos eventos que têm sido notícia… A título de exemplo, quase no final, em tempo de Outono e de castanhas, escreve Inês: “E depois há as castanhas. O cheiro das castanhas. O sabor das castanhas. O calor que passa para as nossas mãos quando as agarramos. Mas desde este ano que as castanhas estão diferentes. Por causa de uma lei qualquer, passou a ser proibido embrulhá-las em papel de jornal ou nas folhas das Páginas Amarelas. Agora tem que ser tudo muito limpo, muito sem micróbios, tal como manda a Europa. E, como todos sabemos, a Europa é que manda em nós. Mas ainda me lembro do que eu aprendia num pacote de castanhas.”
Escrita rápida, com humor bastante e um olhar para o mundo de forma descomplexada, o livro cativa pela simplicidade, num oscilar entre o conhecimento do passado e o confronto com o presente cheio de reticências e de desafios, à velocidade de uma forma de ver o mundo e a vida, justificando, aliás, o título. Pelo meio, vai havendo uma ou outra mensagem de apaziguamento e, no final… aquilo que a avó Gi (que foi a ofertante do caderno) nem sonharia: o “diário” acaba também por guardar um segredo que pertenceu ao passado da avó, que explica, por outro lado, o azedume que as duas avós de Inês amorosamente mantinham quando se encontravam.
Frases vivas
1. “Quando o nosso coração está completamente cheio de amor por alguém, nada o pode desviar para outros lugares, por mais próximos de nós que estejam.”
2. “O que a gente faz pela felicidade dos nossos pais não tem explicação.”
3. “O Natal devia ser um tempo tranquilo, um tempo em que devíamos ter mais paciência uns para os outros, um tempo de (…) forrarmos de amor o nosso coração. Pois devia. Mas infelizmente não é. O Natal tornou-se um tempo de correrias desenfreadas, de compras desenfreadas (e às vezes vai-se a ver e compramos tudo trocado) e quando finalmente ele termina estamos todos mais cansados do que se tivéssemos andado horas na montanha russa.”

4. “É a sorrir que nos devemos lembrar daqueles que amamos e que já não estão connosco.”

Rostos (85)

Baden-Powell , por Miranda Brito, em Setúbal (Parque Verde da Bela Vista)
Setúbal tem, a partir de hoje, um monumento a Baden-Powell (1857-1941), fundador do movimento escutista, que assinala o centenário do escutismo mundial e os 95 anos da organização Escoteiros de Portugal.

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Rostos (84)

Monumento ao Ferroviário, em Pinhal Novo (1999)

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Rostos (83)

Mulher com cesto, por Melício (1999), em Monchique

Baptista-Bastos, Sebastião da Gama, Ramalho Eanes e a ética

Sob o título "O argumento da honra", Baptista-Bastos escreve no Diário de Notícias de hoje:
«A ética republicana iluminava as virtudes do carácter e a grandeza dos princípios. As revoluções, idealmente, não são, apenas, alterações económicas e substituições de regimes. Transportam a ideia feliz de modificar as mentalidades. Essa mistura de sonho e ingenuidade nunca se resolveu. A esperança no nascimento do "homem novo" não é exclusiva dos bolcheviques. O homem das revoluções jamais abandonou o ideal de alterar o curso da História e de modelar os seus semelhantes à imagem estremecida das suas aspirações.
É uma ambição desmedida? Melhor do que ninguém, respondeu Sebastião da Gama: "Pelo sonho é que vamos/comovidos e mudos./Chegamos? Não chegamos?/Partimos. Vamos. Somos." A ética republicana combatia a sociedade do dinheiro, da superstição religiosa, da submissão, e pedia aos cidadãos que fossem instrumentos de liberdade. As "raízes vivas", de que falou Basílio Teles.
Fomos perdendo, sem sobressalto nem indignação, a matriz ética da República. De vez em quando, releio as páginas que narram os desassossegados dezasseis anos que durou o novo regime, obstinadamente defendido por muitos a quem se impunha a consciência do compromisso. Esses, entre o aplauso e o assobio, percorreram o caminho que vai do silêncio à perseguição, do exílio ao assassínio político. Morreram pobres. São os heróis de uma história que se dissipou, porque o fascismo impediu nos fosse contada, nas exactas dimensões das suas luzes e das suas sombras.
Relembrei estes episódios ao tomar conhecimento, pelo semanário Sol, de que Ramalho Eanes prescindira dos retroactivos a que tinha direito, relativos à reforma como general, nunca por ele recebidos. A importância ascende a um milhão e trezentos mil euros. É um assunto cujos contornos conformam uma pequena vindicta política. Em 1984, foi criada uma lei "impedindo que o vencimento de um presidente da República fosse acumulado com quaisquer pensões de reforma ou de sobrevivência que aufiram do Estado." O chefe do Governo era Soares; o chefe do Estado, Ramalho Eanes, que, naturalmente, promulgou a lei.
O absurdo era escandaloso. Qualquer outro funcionário poderia somar reformas. Menos Eanes. Catorze anos depois, a discrepância foi corrigida. Propuseram ao ex-presidente o recebimento dos retroactivos. Recusou. Eu não esperaria outra coisa deste homem, cujo carácter e probidade sobrelevam a calamidade moral que por aí se tornou comum. Ele reabilita a tradição de integridade de que, geralmente, a I República foi exemplo. Num país onde certas pensões de reforma são pornográficas, e os vencimentos de gestores" atingem o grau da afronta; onde súbitos enriquecimentos configuram uma afronta e a ganância criou o seu próprio vocabulário - a recusa de Eanes orgulha aqueles que ainda acreditam no argumento da honra.»

terça-feira, 16 de setembro de 2008

"Os Lusíadas" em manuscrito, em Setúbal

O 10 de Junho de 2007, celebrado em Setúbal, foi a festa que fez arrancar uma acção de mais de dois milhares de pessoas, que se disponibilizaram a passar a escrito a obra Os Lusíadas, de Luís de Camões. A primeira estrofe manuscrita aconteceu no Club Setubalense, na Avenida Luísa Todi, cerca das 15 horas de 9 de Junho, e teve como copista o Presidente da República; a segunda estância teve a mão de Manuel Alegre, que foi o autor da ideia. E, depois, a obra foi crescendo, passando por diversos sítios de Setúbal, instituições e escolas incluídas, até ser concluída no dia 15 de Setembro do mesmo ano, em sessão havida no Salão Nobre da Câmara Municipal de Setúbal, cabendo a 156ª estrofe do canto X a Maria Isabel Rapozo de Goes du Bocage, descendente do poeta sadino Bocage.
Três meses demorou a cópia da obra, que, em 10 de Junho de 2008, um ano depois de ter sido iniciada, foi entregue em Viana do Castelo (cidade em que se celebrou a data) ao Presidente da República pela Presidente da Câmara Municipal de Setúbal, enriquecida pelos originais de pintores setubalenses como separadores entre os cantos (Acácio Cainete, António Leal de Oliveira, Carlos Pereira da Silva, Graciete Lança, Laurinda Garradas, Maria José Brito, Nuno David e Pólvora D’Cruz).
Três meses depois dessa oferta, em 15 de Setembro de 2008, feriado municipal setubalense, foi apresentada publicamente a edição facsimilada de Os Lusíadas Manuscrito, levada a cabo pela Câmara Municipal de Setúbal, que teve uma tiragem reduzida e cujos exemplares estão a ser vendidos pela autarquia.
A iniciativa de manuscrever a obra épica justificou-se, segundo palavras de Maria das Dores Meira, Presidente da Câmara, por três razões: “a íntima e secular ligação de Setúbal ao rio e ao mar”, “a activa participação de inúmeros setubalenses na gesta dos Descobrimentos” e “o estreito contacto entre as histórias de vida dos dois poetas”, Camões e Bocage.
No final da transcrição, há a lista de todos os participantes, com a respectiva indicação dos versos que copiaram e há ainda uma lista de 44 participantes cujas transcrições foram substituídas por conterem anomalias na apresentação.
Uma ideia bonita para recordar a importância que o 10 de Junho de 2007 teve para Setúbal e para lembrar uma iniciativa cultural de fôlego que aqui foi levada a cabo.
Gostaria, no entanto, de dizer uma palavra quanto à listagem dos “substituídos”, porque estou incluído nela. É que, aquando da transcrição que me calhou, logo no dia inaugural da acção, vi que havia erros na transcrição, porquanto a disposição gráfica estava a ser desrespeitada, com avanço de linhas. Chamei a atenção da pessoa que estava a acompanhar a acção para o efeito, tendo-me sido dito que não havia nenhum problema e que copiasse seguindo a ordem, mesmo que ultrapassasse o limite que estava destinado à estrofe que me coubera. Estranhei, mas procedi assim. Foi essa a razão do erro, que não sei onde começou… A minha colaboração (na estrofe 21 do canto I), bem como a dos outros 43, permitiu então, que mais pessoas participassem e assim ficassem ligadas aos Lusíadas. Também não foi mau!

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Bocage à vista (55) no seu dia - 2ª série

Festa na Praça de Bocage, em 15 de Setembro de 1905 (1º centenário do nascimento de Bocage)
Edição em postal de Mendes Estafeta (colaboração de Fernando Marcos)
[Passam hoje 243 anos sobre o nascimento de Bocage. Com esta 2ª série de imagens bocagianas, publicada desde o início de Setembro, pretendeu este blogue mostrar memórias do poeta sadino, tal como já fez com a 1ª série, publicada ao longo de todo o mês de Setembro do ano passado. Esta série por aqui se finda. Pode ser que haja 3ª... qualquer dia.]

Madonna, em "Sticky and Sweet Tour"

Muita espera e muita demora para entrar no Parque da Bela Vista. Depois, muita coreografia. Muito audiovisual. Muita ginástica. Muita dança. Muito físico. Muito público. Pouco entusiasmo. Pouca ligação aos 75 mil visitantes. Pouca emoção. Entre o inicial "hello, Lisbon" e o "obrigado" final. Mais? "Game over", que foi a forma como os ecrãs fecharam o concerto. Assim. Secamente.

domingo, 14 de setembro de 2008

Bocage à vista (54) - 2ª série

"Bocage e as Musas", de Adelino Silva (1983), [ver "Bocage e as Ninfas", de Fernando Santos (1929)]

sábado, 13 de setembro de 2008

Bocage à vista (53) - 2ª série

Bocage visto por Silva Neto [Distrito de Setúbal, nº 1438, 13.Set.1977]
(colaboração de Fernando Marcos)

A propósito do Dia do Diploma, que as escolas viveram ontem

"O mérito na escola e o demérito da encenação"
Não parece haver razões para o alarme catastrófico dos sindicatos, mas a entrega de prémios aos melhores alunos dispensa a feira de vaidades montada pelo Governo
A polémica suscitada pela entrega de um prémio de 500 euros aos melhores alunos do 12.º ano não é apenas mais um episódio do velho debate sobre o que é e para que serve a escola nos dias de hoje. É óbvio que por ali se cruzam as concepções dos filhos de Rousseau e dos adeptos do ensino mercantilista, os crentes do poder de transformação social da escola e os que insistem em vê-la apenas como uma peça no sistema de produção económica, os militantes de uma corrente dominada pela mediania do colectivo e os que apelam à necessidade de se cumprir o potencial individual de cada um dos alunos. Mas além de um debate ideológico condimentado pela propensão maioritária da classe docente para o conservadorismo, o que vale a pena questionar é se o espectáculo que o Governo montou para distribuir os prémios está de acordo com o espírito que justifica a sua existência ou se, pelo contrário, o subverte.
Numa perspectiva crua da realidade, os prémios concedidos aos melhores alunos limitam-se a transportar para as escolas um modelo de emulação que já existe nas empresas e instituições privadas e que, a curto prazo, passará também a vingar nas várias camadas do funcionalismo público. Aqui, em vez de promoções ou de prémios de desempenho, há um cheque para o vencedor absoluto, quadros de honra para alunos que se destacaram pelas mais variadas razões ou quadros de excelência para os que obtiveram melhores notas. Em vez de enquadrar o desempenho no abstracto da turma ou da comunidade escolar, o que o sistema educativo começa também agora a privilegiar é o resultado obtido por um indivíduo numa competição directa com os seus colegas. Pode ser pouco romântico, pode significar a renúncia definitiva do papel transformador da escola na procura de um mundo idílico ou justo, mas o que é facto é que a iniciativa obriga os jovens estudantes a confrontarem-se com a realidade que os espera no mundo do trabalho. E a perceberem que o mérito é devidamente reconhecido e premiado.Não havendo razões de fundo para se censurar o princípio, vale a pena questionar o método como o Governo o aplicou no terreno, com 23 ministros e secretários de Estado a distribuírem cheques a eito pelas escolas. Percebe-se que o Governo veja na medida uma aposta com enorme significado para melhorar os resultados das escolas. Mas o aparato com que a embrulhou ameaça o seu sentido e utilidade imediata. Porque se é bom distinguir os melhores, essa distinção não se deve assemelhar a uma entrega de Óscares que justifica até a presença de tantas e tão altas figuras da governação. Tem de ser feita no quadro de uma reflexão ao nível da comunidade escolar na qual têm de ser considerados também os que lutaram e ficaram perto do prémio ou os que, por diferentes motivos, não têm bases para entrar na competição. Em idades problemáticas como as dos alunos do 12.º ano, a institucionalização de uma elite em galas triunfais pode muito facilmente tornar-se um factor de desinteresse, inveja ou frustração para os que se sentem à partida incapazes de competir com os melhores. Não parecendo haver razões para o alarme catastrófico dos sindicatos, a entrega de prémios aos melhores alunos dispensa a feira de vaidades montada pelo Governo. Num país viciado na mediocridade, é bom que se enalteça o mérito, mas, ao fazê-lo com tantos ministros, jornalistas e televisões, corre-se o risco de se perder o seu poder de exemplo para se entrar numa gala de celebridades onde se cava um fosso entre vencedores e vencidos. Que haja prémios, quadros de honra e de excelência, que se leve os alunos a perceber que o trabalho, a dedicação e o esforço são reconhecidos é uma coisa; que se faça com o seu sucesso uma encenação triunfal é um erro crasso, que se pode reflectir nas estatísticas do insucesso. Que é, afinal, o problema mais grave da educação no país.
Manuel Carvalho. Público (hoje).
O Dia do Diploma, criado no final do ano lectivo passado, teve primeira realização ontem. Visou valorizar a escola através da atribuição de um diploma de mérito e de um prémio pecuniário de 500 euros ao melhor aluno que tenha concluído o ensino secundário ou o seu curso profissional no ano lectivo anterior.

Hoje, no "Correio de Setúbal"

Diário da Auto-Estima – 85
Lápide – Há uns anos que era desconhecido o rumo que a lápide em memória do escritor setubalense Tomás António dos Santos Silva (1751-1816) tinha tomado. Com efeito, em 1909 (quase há 100 anos!), o jornal sadino “A Mocidade” procedeu a uma subscrição pública para a colocação da dita lápide na casa em que o poeta nascera, situada no largo que tem o seu nome, mas obras levadas a cabo em prédios desse largo foram o marco para o desaparecimento da lápide. Felizmente, o jornal “O Setubalense”, a propósito de um outro assunto, descobriu o estado e a localização da lápide para os seus leitores (3 de Setembro) – um morador da zona em que houve as ditas obras, vendo, na altura, a pedra no chão, agarrou-a e guardou-a de ir parar a uma qualquer lixeira de entulho. Agora, o morador mostrou-a ao jornal e lamentou que ela não tivesse sido reposta no sítio. Está-se a tempo para que tal suceda, bastando haver convergência de vontades. A reposição da lápide seria um bom serviço à memória por várias razões: por ser uma forma de lembrar uma figura importante de Setúbal; por ter resultado de uma subscrição pública, logo, da vontade de muitos setubalenses; por conter em si uma dupla memória – a do homenageado e a do grupo de cidadãos que há um século teve a iniciativa. Oxalá haja, pois, vontades congregadas e decisões rápidas na reposição de uma inscrição da memória colectiva! Em 1 de Março do próximo ano, vai fazer um século que o jornal “A Mocidade” lançou a ideia da lápide. Oxalá nessa altura já possa estar respeitado o desejo dos nossos antepassados e cumprida a vontade do morador de ver a pedra no seu sítio!
Condecorações – Numa reunião recente da Câmara Municipal de Setúbal, foram aprovados os nomes dos cidadãos e entidades a serem contempladas com a medalha de mérito municipal no próximo feriado, em 15 de Setembro. Até aqui, tudo pareceria normal, independentemente de se concordar ou não com os nomes propostos. O estranho surgiu do facto de, publicamente, os nomes apresentados terem sido escrutinados individualmente na mesma sessão, tendo o executivo chegado à conclusão de que três desses nomes deveriam ser retirados da lista de condecorações a haver. Toda a gente ficou a saber que, a par de uns quantos nomes que vão ser contemplados, houve uns tantos que foram rejeitados, tendo os mesmos sido divulgados e publicadas notícias a propósito. Qual é o direito que protege um cidadão de se ver publicamente rejeitado por uma coisa que não pediu? Até que ponto pode o nome das pessoas ser assim jogado, entre aprovações e recusas, na apreciação pública de um prémio a que não se candidataram? Injusta, muito injusta, esta exposição não requerida!
Ano lectivo – Aqui está o 2008/2009. Seria bom que este ano lectivo corresse sem atropelos e sem demagogias (sejam elas dos números, dos princípios, das práticas ou das decisões) em favor da aprendizagem dos alunos e de um ambiente pacífico nas escolas. Seria bom! É que… “para ser professor, também é preciso ter as mãos purificadas”, porque “a toda a hora temos de tocar em flores” e “a toda a hora a Poesia nos visita”. É que o sublime é ser o professor “a lição em pessoa – que é isso mais importante e mais eficaz que sermos o papel onde a lição está escrita”! Quem disse estas verdades foi Sebastião da Gama, bem conferidas pela prática que no seu “Diário” regista. A todos cabe conceder alguma atenção a estes princípios.

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

A inscrição, a memória, a arte pública... em Setúbal?

Em O Setubalense de hoje, Francisco Casas Novas, na rubrica semanal "A bola e a cidade", regista a questão da falta de arte pública que enalteça figuras setubalenses (individuais e/ou colectivas), contrariamente ao que acontece em muitas outras terras, algumas delas bem próximas.
A questão não é velha, como se sabe... Bocage, que neste mês se celebra, morreu em 1805 e só em 1871 teve o seu monumento em Setúbal, por iniciativa de Feliciano de Castilho e com forte apoio do Brasil...
Eis parte da crónica de Casas Novas:

Em Setúbal, no "Quartel do 11", reivindicação na parede

O chamado "Quartel do 11", em Setúbal, que, ao tempo em que Bocage ali ingressou, era o "Regimento de Infantaria de Setúbal", está desactivado há anos, tantos quantos a burocracia ou o desinteresse pelo património público têm permitido, tantos quantos os setubalenses têm visto passar sem que o(s) nó(s) tenha(m) sido desenvencilhado(s) por soluções visíveis com interesse local e regional, pelo menos. Por estes dias - não sei quando foi, só hoje vi -, alguém, numa das paredes do "Quartel do 11", numa das zonas mais conhecidas da cidade, entendeu registar a reclamação, um pouco à maneira de outra que há anos correu o país escarrapachada na barragem de Alqueva... isso mesmo: "Aqui só um Centro Cultural, porra!"
Duas preocupações assomam: a da degradação progressiva do património público construído, por um lado; a da necessidade de um espaço para as actividades e organizações culturais partilhadas e participadas, por outro. Duas coisas que, em Setúbal, se sabe muito bem que têm sido sentidas!

Bocage à vista (52) - 2ª série

Bocage em rótulos de cigarros - Tabacaria Havaneza, de Pernambuco
(colaboração de António Cunha Bento)

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Bocage à vista (51) - 2ª série

Caderno diário [ed.: Setúbal: Armazém de Papéis do Sado, 2005(?)]

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

O início do ano lectivo no "Público" de hoje

O Público de hoje resolveu destacar a educação, logo chamando a atenção na primeira página para a resposta de 85 professores a uma pergunta simples: “O que vai fazer [neste ano lectivo] para melhorar a escola?” As 85 respostas são apresentadas e permito-me destacar quatro – três pela frontalidade e uma pela solidariedade. Vamos, então, às da frontalidade: “Vou lidar com os problemas com uma postura mais humana do que a que o Governo tem adoptado para com os professores” (Isabel Santos, 29 anos, 1.º CEB); “Continuar a ser a professora que sempre fui.” (Ana Maria Machado, 59 anos, professora de Português, do ensino secundário) e “Cumprimentar todos com mais entusiasmo: "Bom dia Gente Boa." Vai existir certamente paz.” (Adriano Figueiredo, 58 anos, Ed. Vis., Art. Plást.s, Hist. da Cult. Art., 3.º CEB e sec.). E, agora, vamos à da solidariedade, porque estou na mesma situação: “Como avaliador dos meus colegas, vou pôr engenho e arte na promoção de uma relação sadia, de recorte humanista, na escola que quero democrática.” (Joaquim Vinhas, 54 anos, História, sec.)
Qualquer uma das quatro respostas dá bem a ideia do ambiente que se está a viver nas Escolas. Hoje, uma colega dizia-me que, no ano lectivo anterior, o que se viveu foi o agudizar do confronto entre o Ministério e os professores, mas que aquilo que se vai verificar a partir de agora é a tensão dentro das escolas. Terá valido a pena? Que exemplos podem passar para aqueles em cujo processo educativo estamos embrenhados?
Os vários textos do Público vão ainda mais longe. E não deixa de ser significativo verificar que “Portugal é o país da União Europeia que, ao nível do 2.º ciclo do básico, dedica menos tempo ao ensino da língua e da Matemática. No 3.º ciclo (7.º, 8.º e 9.º anos) apenas a Holanda apresenta uma percentagem da carga horária inferior.” Andou a gente a assistir a essa celebração do acordo ortográfico para quê? Tem andado a gente a sujeitar-se às teorias das disciplinas para tudo e para nada, que cortam em áreas essenciais e surgem como invenções e ocupações dos tempos para quê, quando já toda a gente viu que daria imenso jeito que algumas áreas curriculares pura e simplesmente desaparecessem e dessem lugar a tempos para Língua Portuguesa, Matemática e outras disciplinas? Bom exemplo de identidade a partir da escola!...
Também é curiosa a leitura dos resultados finais. Segundo a Ministra da Educação, "é um facto que os resultados melhoraram e isso significa que mais alunos têm um percurso escolar regular, que transitaram de ano. É isso que se espera das escolas, é isso que se espera dos professores, foi isso que as escolas e os professores fizeram nos últimos anos: trabalhar intensamente, de uma forma diligente, esforçada, para melhorar os resultados". Segundo o Primeiro-Ministro, “os bons resultados [devem-se] às políticas que apostam na Educação”. Segundo Paulo Feytor Pinto, da Associação dos Professores de Português, “a carga burocrática quando se pretende reter um aluno, sobretudo no ensino básico, é muito grande e maior do que era há uns anos. Não nos atirem areia para os olhos porque estes resultados não significam uma melhoria real das aprendizagens”. Onde está a convergência?
E, finalmente, as conclusões de José Manuel Fernandes, director do jornal: “uma grande parte dos professores, talvez a maioria, afirma ou dá a entender que ensinaria melhor se o ministério atrapalhasse menos”; “há instruções para chumbar menos alunos, houve exames mais fáceis e aumentou-se tanto a burocracia que é quase preciso ser um herói para, como se diz em eduquês, "reter" uma criança ou um adolescente”; “ficámos a saber que Portugal é um dos países da União Europeia onde se dedica menos tempo ao ensino da língua pátria e da Matemática, precisamente as duas cadeiras centrais, básicas, de qualquer currículo escolar; ou que os docentes portugueses de todos os níveis de ensino são os que dão mais horas de aulas e os que mais tempo têm de permanecer nas escolas, razão por que é provável que sejam dos que têm menos tempo para preparar as aulas e dos que mais horas gastam a preencher papéis e a desempenhar funções burocráticas”. O director do Público não perde, aliás, tempo e conclui: “Num país onde os níveis formais de qualificação da população continuam ao nível dos da Turquia (só 28 por cento da população entre os 25 e os 64 anos completou o ensino secundário), este teatro político não é uma comédia, é uma tragédia que pagaremos muito caro no futuro.
Veremos, nesse futuro, de que lado está a razão. Mas não se augura nada de bom. E as respostas dos 85 professores, que não falaram em reivindicações salariais ou sociais, são elucidativas quanto à preocupação de cumprimento profissional, contrariamente à ideia que, ao longo do ano lectivo passado, se gerou dessa mesma profissão. Na educação, o pensamento do futuro deveria ser mais risonho, mesmo porque educar é também uma forma de acalentar a esperança. Infelizmente, como também se antevê do conjunto de trabalhos do Público, o mais importante do ano lectivo que se inicia vai ser a burocracia. Que não tem encanto, não tem grandes compatibilidades com a educação e, como se sabe, tem sido uma das responsáveis pelo atraso do país!

Bocage à vista (50) - 2ª série

Livros com anedotas alusivas a Bocage (2)
(de uma exposição na Biblioteca Nacional de Portugal, em Novembro de 2007)

terça-feira, 9 de setembro de 2008

Camões, grande Camões...

Os leitores de língua inglesa vão ter ao alcance a poesia lírica de Camões através da obra Collected Lyric Poems of Luís de Camões, com tradução de Landeg White, professor britânico que exerce a docência na Universidade Aberta, em Lisboa. A obra é editada pela americana Princeton University Press.
Transcrevo parte da nota de imprensa da Universidade Aberta sobre o acontecimento: «A antologia está organizada de acordo com as viagens de Camões, “o que permite a leitura do livro como uma viagem”, enfatiza Richard Howard, editor da série Lockert Library of Poetry in Translation. Howard sublinha também que a colectânea agora publicada é “um tesouro” que, “pela primeira vez, em inglês, contém uma colecção única de poesia do Renascimento e uma obra clássica da literatura ocidental”. Segundo um comunicado da Princeton University Press, a lírica de Camões é suficiente para o poeta ser colocado “entre os grandes poetas, mesmo se nunca tivesse escrito Os Lusíadas”. “Luís de Camões é famoso em todo o mundo como autor da grande épica do Renascimento, Os Lusíadas, mas a sua enorme e igualmente importante obra de poesia lírica é praticamente desconhecida fora de Portugal”, assinala a editora.»
A obra vai ser apresentada em Lisboa, no salão nobre da Universidade Aberta, em 25 de Setembro, pelas 17h30.
Gosto de ler Camões, sempre me deixei entusiasmar com a sua poesia lírica (manancial de descobertas e inesgotável fonte de formas de dizer o “eu”, o amor e a vida). Não podia, pois, ficar insensível a mais esta iniciativa que passa a alargar a leitura camoniana e a mostrar aos interessados um dos contributos da cultura portuguesa para o Renascimento. (Como estamos em mês de Bocage, tive que lhe pedir emprestado o título deste postal, parte de um dos seus versos...)
[foto: Camões visto por Casquilho, in Camões. Dir.: Óscar Lopes. Lisboa: Editorial Caminho, nº 1, Julho/Agosto.1980, pg. 20]

Bocage à vista (49) - 2ª série




Bocage, entre o descafeinado e a mistura, nos cafés "Nicola"
(colaboração de Fernando Marcos)

Ah, o silêncio!...

No Público de hoje, uma interessante crónica assinada por Miguel Gaspar, intitulada "A sombra do silêncio". Curiosa, porque estamos numa sociedade que se farta da classe dos políticos que falam por tudo e por nada e que também se incomoda se nessa mesma classe há quem opte por momentos de silêncio. Um problema de senso, apenas? Transcrevo o início e o final da crónica.
«O que é que estamos a dizer quando estamos calados? A pergunta pode parecer paradoxal, mas não é. Enquanto seres humanos, estamos sempre a comunicar. Se não dizemos nada, falamos através dos gestos ou da roupa. E mesmo se desaparecermos do campo visual dos outros seres humanos, estamos a dizer aos outros que desaparecemos. E os outros perguntam: mas afinal de contas, por que é que ele desapareceu?
Falar muito ou não dizer nada podem não ser coisas tão diferentes quanto isso. O anterior líder do PSD, Luís Filipe Menezes, era muito falador (e outros antes dele, como Santana Lopes, também). A páginas tantas, apetecia dizer-lhe o mesmo que o rei de Espanha disse a Hugo Chávez: por que não te calas? O longo (mais de um mês) silêncio da actual líder da oposição levou-nos a perguntar: mas por que é que não fala?
Nunca estamos sós quando falamos (ou quando ficamos calados). À volta do que dizemos, os outros constroem uma trama. Por que é que ele disse isto? E por que o disse agora? E por que não disse outra coisa? E por que foi ele a dizê-lo? Essa trama é a soma das inferências que os outros fazem a nosso respeito. Por isso, a vida está cheia de equívocos. É por causa de tramas dessas que passamos a vida a tramar-nos. Assim terá acontecido, dizem alguns (mas por que será que o dizem?), com Manuela Ferreira Leite. Antes de falar, já estava tramada por ter ficado tanto tempo calada. (...)
José Sócrates, como Santana Lopes e Filipe Menezes, é filho de uma geração para quem fazer política é sobretudo uma maneira de fazer televisão. No PSD sempre gostaram de o fazer seguindo o modelo da telenovela, atribuindo-se ao líder o papel do galã. Com José Sócrates é mais tecnologia, tipo The Matrix, um país em forma de realidade virtual onde um dia todos os eleitores serão como Mr. Smith. Manuela Ferreira Leite quer cortar com essa escola, num certo sentido regressando ao passado. Calando-se, tornou-se apenas um duplo dos políticos prolixos. Tem de encontrar o tempo da sua palavra. Não o conseguirá se continuar a viver à sombra do silêncio.»

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Bocage à vista (48) - 2ª série

Cartaz do "Cortejo Evocativo da Cidade de Setúbal na época de Bocage"
[Setúbal, 15 e 16 de Setembro de 1979]

domingo, 7 de setembro de 2008

Bocage à vista (47) - 2ª série




Livros com anedotas alusivas a Bocage (1)
(colaboração de Fernando Marcos)

Eduardo Lourenço - "O homem que ensina Portugal a pensar"

O último número da revista Ler (Lisboa: Círculo de Leitores, nº 72, Setembro.2008) tem vários assuntos com interesse, como se pode ver na apresentação da capa, ao lado. Da entrevista que Carlos Vaz Marques fez a Eduardo Lourenço, em que pelos seus 85 anos passam a vida, a literatura portuguesa, o pensamento, a escrita, a leitura e o saber, apresento alguns destaques.
Livro – “O relacionamento com os livros – que vem de todos os livros que a gente lê quando é jovem – torna-os bocados de nós próprios. São as tábuas privadas das nossas leis. As escritas e as não escritas. Faltará qualquer coisa quando a nossa relação com eles for puramente electrónica.”
Geração – “Cada geração não é mestra de si mesma. Há sempre um ou dois que são um pouco as referências ou as pessoas que influenciam os outros. Ou porque são mais velhos ou porque são mais brilhantes.”
Poesia – “A grande poesia é aquela que, de repente nos oferece um mundo, no qual a vivência deste se altera em cores e dimensões não sonhadas. É a criação de um outro mundo que se acrescenta realmente ao nosso mundo visível. É isso e não os versos que são muito bonitos.”
Camões – “Tem uma percepção dos valores humanos que não é essa, tranquila e tranquilizadora, que a ortodoxia, a visão católica normal do mundo inculcava. Há já ali uma grande angústia. Apesar de ele ser o autor da nossa epopeia, há nele uma visão pessimista do mundo. É uma visão que anuncia várias coisas.”
Fernando Pessoa – “Não há questão nenhuma, ainda hoje, que nos interesse, que de uma maneira ou de outra não esteja na obra do Pessoa. (…) O Pessoa, se o releio, é sem a sensação de releitura. Se estou muito tempo sem o ler, torno a receber as mesmas impressões, os mesmos choques.”
Homem – “O Homem é um ser ficcionante. Independentemente do que seja o objecto dessa ficção. Nós estamos sempre ficcionando. A nossa relação com o real é uma relação imaginária.”
Escritor – “O que me interessa é o auto-retrato que cada um de nós traça escrevendo. Seja o que for. Nós não precisamos de psicanalista para nada. A gente dá-se. Vende-se. A escrita é realmente a escrita do nosso inconsciente. Uma pessoa não pode trair-se a si própria.”
Outro – “Eu próprio sinto que estou em dívida. Estou em dívida para com a Humanidade inteira, de qualquer modo.”
Gabriela Llansol – “É um caso. Penso que muito se falará dela no futuro. Provavelmente, será – penso eu – o próximo grande mito literário português. A escrita dela é fulgurante. Não há nada que se possa comparar àquilo. (…) Também ela, de uma maneira diferente do Pessoa, vem de um planeta estranho: é aquele mundo flamengo, aqueles Boschs, aquele misticismo renano, aquelas coisas complicadas que aparentemente têm pouco a ver connosco. Já tiveram, em tempos. É poesia da mais alta. Sem se oferecer imediatamente com esse valor da poesia.”
Gostar – “Não é obrigatório gostar da Gioconda. Mas é uma pena não gostar da Gioconda.”
Pérola – “Há um poema extraordinário do Goethe, em que ele conta que Jesus ia com os discípulos, lá na Galileia, e depararam com o cadáver de um burro exposto ao sol. Já só ossos. Os discípulos começaram a falar das orelhas e disto e daquilo, a brincar mais ou menos malevolamente com o pobre cadáver do burro. E Jesus disse-lhes: ‘Olhai para os dentes dele, brilham como uma pérola.’”

sábado, 6 de setembro de 2008

Força, Simone!

Há uns tempos, numa entrevista ao jornal Record, Simone Fragoso dizia: “uma boa classificação em Pequim seria melhorar os meus tempos e tentar chegar a uma final”. Hoje, quando vi a Simone no desfile da equipa portuguesa dos atletas para-olímpicos, do alto do seu metro, às cavalitas e a filmar, senti uma satisfação grande ao reconhecer a alegria, o optimismo, a energia e a boa disposição que sempre lhe vi enquanto aluna na minha escola. Força, Simone!
[foto no Expresso de hoje]

Bocage à vista (46) - 2ª série

Bocage em xilogravura, por Manuel Cabanas
[colaboração de Fernando Marcos]

José Leon Machado nas memórias da Primeira Grande Guerra

O romance Memória das estrelas sem brilho, de José Leon Machado (Braga: Vercial, 2008), recupera o tema da participação portuguesa na Primeira Grande Guerra, urdindo uma história em torno da personagem Luís Vasques, que foi combatente pelo Corpo Expedicionário Português e que, vinte anos depois do fim do conflito (e quando se preparava o início da Segunda Grande Guerra), decide escrever o seu trajecto.
Vasques, narrador de si mesmo, em jeito de memórias, reconstrói o seu percurso em capítulos que intervalam a narrativa do vivido na guerra e a vida depois da guerra, quando tem 44 anos (em 1938), justificando-se: “Escrevermos sobre uma coisa que nos aflige ou incomoda é uma forma de exorcizá-la, tornando-a inofensiva.” Esta justificação confirma o que se passa no primeiro contacto do leitor com a personagem, logo no início da história, um Luís Vasques que, vinte anos depois de a guerra ter acabado, ainda tem “pesadelos da guerra”.
No percurso de Vasques, há lugar para a história de Rato, seu vizinho, soldado, impedido, aventureiro e amigo, e para a de Aninhas, que, de beleza avistada no cais de uma estação, chegou a esposa do ex-combatente.
Ao mesmo tempo que quer contar a guerra, o narrador não esconde o seu ressentimento com essa mesma guerra, até ao ponto de ter arrumado no sótão os escritos memorialísticos que outros produziram sobre esse tempo, decisão que não esconde espírito crítico quanto ao valor desses testemunhos – “O meu contacto com a guerra, depois que regressei, têm sido os livros de memórias que colecciono e que vão sendo publicados por um ou outro veterano. Tenho algumas dezenas e são de valor irregular, quer literário, quer de fidelidade aos acontecimentos. Uns são mais patrioteiros, louvando a coragem, a determinação e o valor dos soldados portugueses. Outros são mais críticos, quer ao desempenho do CEP na Flandres, quer à decisão dos políticos portugueses em arrastar o país para a guerra. Alguns livros, escritos por oficiais subalternos, limitam-se a descrever os acontecimentos do dia-a-dia nas trincheiras. Estes últimos, li-os com interesse e senti que havia algures alguém que sofria como eu. Acabei por perder o interesse por esses livros e guardei-os no sótão da casa dentro de um caixote. Fi-lo, não por receio de que me desse a tentação de novamente os folhear, mas para evitar que alguma visita da casa desse com eles na biblioteca e se pusesse a falar do assunto.”
A narrativa ganha verosimilhança com os cruzamentos havidos entre as personagens e personalidades que tiveram responsabilidade na história portuguesa, seja através de opiniões exaradas, seja pelo facto de algumas dessas personalidades se transformarem também em personagens – além de Oliveira Salazar, professor de Vasques em Coimbra, há referências aos nomes de Norton de Matos, Afonso Costa, Gomes da Costa, Tamagnini, Simas Machado, João Chagas, Sidónio Pais. Mas, tratando-se de uma obra de ficção, há também indicadores que a acentuam, como a referência a convívio de um antepassado de Vasques com João da Ega e Carlos da Maia, personagens queirosianas…
Depois de 34 capítulos em que Vasques conta a sua história – passada entre o nascimento, em 1894, e 1938 – e em que o leitor pensa assistir ao final da narração, volve meio século e o romance entra no “epílogo”. É ainda o mesmo Vasques, já com 93 anos (em final da década de 80), que escreve, rabiscando em papel almaço o seu encontro com o bisneto do Rato (Joaquim Domingues), estudante na Universidade do Porto, que pretendera ouvi-lo a testemunhar sobre a participação na Grande Guerra, com vista a um trabalho académico para a disciplina de Cultura Portuguesa. Nessa altura, Vasques reabre a arca do sótão, alegoria de um caminhar pelas memórias, de onde tira o seu manuscrito e regista: “Amanhã entregarei tudo ao rapaz. Talvez ele encontre nestas páginas o que procura, ou talvez encontre o que não procura, e que é aquilo que a vida, o pó e a cinza a que todas as coisas se reduzem lhe reservaram.” Ainda não é, contudo, o final do romance. Uma “nota do editor”, escrita duas décadas depois, apresenta um outro narrador – o bisneto do Rato, na casa que fora de Luís Vasques, a preparar a edição das memórias que lhe tinham sido ofertadas e a dar conta do destino de várias personagens que o tempo foi devorando, assim se fazendo a ponte entre uma das linhas temáticas fortes deste romance (a participação lusa na Primeira Grande Guerra) e a actualidade.
Tal como aconteceu com A filha do capitão, de José Rodrigues dos Santos (Lisboa: Gradiva, 2004), este é também um romance que permite aos portugueses do século XXI saberem o que foi a participação de Portugal no conflito mundial de 1914-1918, para cuja construção foram naturalmente indispensáveis as informações contidas nas memórias dos combatentes publicadas ao longo dos anos. Muito embora a escrita memorialística portuguesa da Grande Guerra possa enfermar dos defeitos que Luís Vasques lhe aponta, certo é que umas dezenas de combatentes deixaram o seu contributo testemunhal em livro ou em periódicos, forma de não se esquecer essa participação, bem como as causas e as condições que a determinaram e em que ela foi feita (na área da ficção, a literatura portuguesa foi bem parca na abordagem deste tema). Este livro é um bom exercício dessa reconstrução, ao mesmo tempo que nos fala do que foi o Portugal do século XX, possibilitando mesmo alguma leitura sociológica desse tempo.
Marcas de leitura
Amor - “O que faz com que o amor seja tão perturbador e tão excitante são a suspeita e a dúvida.”
Cunha - “O nosso povo tem o vício ancestral da cunha. Imaginando de antemão que não poderá, pelas vias legais, alcançar o que pretende, serve-se da cunha. E para tudo a utiliza, mesmo quando desnecessário. Simplesmente porque não acredita na justiça, nas leis e nos regulamentos. Isso, pensa o povo, é para os ricos, os poderosos. O pobre só sobrevive com a cunha.”
Demitir - “Demitir alguém das suas funções porque tem convicções políticas diferentes das do poder instituído é uma vileza.”
Desaparecidos (na guerra) - “É muito triste uma pessoa desaparecer na guerra. Não há túmulo onde a chorarmos e onde colocarmos flores quando sentimos a falta dela. E, depois, é a ténue esperança de um dia a pessoa voltar, mesmo sabendo que isso é impossível.”
Guerra - “Não se pode falar da guerra a quem nunca a viveu. Por mais pormenores que se contem do horror por que passámos, o que escuta nunca o poderá compreender inteiramente. Alguns fazem até um ar de incredulidade, como se não fossem possíveis tais atrocidades.”
Identidade - “Cada homem está sujeito à cultura onde nasceu e foi criado e é com os olhos desfocados por essa mesma cultura que vê e julga a cultura dos outros."
Memória I - “A memória, quando espicaçada, assemelha-se a um rio que transborda e inunda as terras à volta. A água barrenta espalha-se irregularmente pelos campos e pelos matos e pode ou não chegar às habitações. A memória inunda o papel almaço em gatafunhos apressados e só tarde me dou conta de quão longe chegou a água das palavras.”
Memória II - “Tudo nunca se pode saber. (…) O que sabemos ou podemos contar são pequenas parcelas, pedaços do passado, transformados pelo tempo e pela memória, sempre imperfeita e pouco segura.”
Sede - “Onde há homens, há sede. Se está calor, os homens bebem para refrescar; se está frio, bebem para aquecer. Para já não falar de outras motivações, mais do foro pessoal que atmosférico.”
Vida - “Quando o que está em causa é a defesa da própria vida ou a do camarada, toda a argumentação contra a guerra e a violência se desfaz em pó.”

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

Bocage à vista (45) - 2ª série

Camões e Bocage encontram-se na imortalidade - caricatura de Manuel Gustavo
publicada em Paródia, nº 151, 22.Dezembro.1905
[colaboração de Fernando Marcos]

Coisas de que Octávio Machado fala (1)

As finais da Taça de Portugal no Estádio Nacional
"Discutia-se então, como ainda hoje, aliás, o facto de todas as equipas terem de se deslocar a Lisboa para disputarem a final da taça. Os defensores do Jamor argumentavam com a simbologia do Estádio Nacional, o que, quanto a mim, não faz qualquer sentido. Por exemplo, tivemos aqui uma fase final de um Campeonato da Europa e nem um jogo se realizou no Estádio Nacional. Como é que isto se explica? No Estádio Nacional só se disputa a final da taça, não é utilizado para mais nada nem por mais ninguém. Antigamente ainda se podia dizer que a Selecção Nacional jogava lá, porque de facto fazia lá muitos jogos, mas neste momento já nem isso acontece. Serve para treinos, principalmente do Benfica, e pouco mais. Atletismo sim, é muito praticado no Jamor, mas futebol é quase nulo. Nem as selecções jovens lá jogam. Agora, fazer-se a defesa do Estádio Nacional porque tem uma certa simbologia, dizer-se isso é demagogia... No princípio da temporada devia definir-se qual o estádio para a final da Taça de Portugal, como acontece na Liga dos Campeões. É ali naquele estádio e acabou. Todos os anos rodava e assim levar-se-ia a festa da Taça de Portugal, a festa do futebol, a locais diversos do país. Com isso se conseguiria a promoção do futebol, e mesmo em termos turísticos era importante, porque essas regiões também eram promovidas, todos ficavam a ganhar."
Octávio Machado. Vocês sabem do que estou a falar. Col. "Livros d'Hoje". Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2008, pg. 55.

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Profissões quase extintas na "Magazine Reportagem"

Aí está o segundo número de Magazine Reportagem, a revista mensal que teve número inaugural em Agosto, devida ao fotógrafo sesimbrense Rui Cunha. O tema desta segunda edição é “Rostos do ofício – Retratos de uma vida de trabalho”, que alinha com fotografias de Rui Cunha e textos de Vanessa Pereira.
Por estas objectivas passam as experiências e as vidas de quatro pessoas: de Maria Emília Pinhal e Domingos Marçal Caiado, agricultores, em Caixas; de José Guilherme Páscoa Simões, barbeiro; de Abílio Caetano Carvalho, relojoeiro (falecido enquanto era preparado este número da revista).
Os textos – pequenas reportagens – descrevem as profissões respectivas e dão a palavra aos actores, excepto no último caso em que a fala é de Rita Carvalho, a viúva. Qualquer um deles constitui um bom pretexto para a identidade local e para a memória e o facto de usarem uma linguagem acessível pode mesmo possibilitar que entrem na sala de aula para estudar um género jornalístico como a reportagem ou o retrato ou para conhecer as profissões (ainda que quase em extinção) e a sociedade local, mesmo porque todos os retratados são também interessantes figuras humanas pelo seu exemplo.
Um pouco do “mundo à frente das objectivas”, pois. Que se vê com prazer, claro.

Bocage à vista (44) - 2ª série

Bocage, por Júlio Pomar (1983)

[a partir de programa do Prémio Literário Bocage 2001, promovido pela LASA (Liga dos Amigos de Setúbal e Azeitão)]

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

Mistérios que o tempo resolve: a lápide que lembrava Tomás António Santos Silva, em Setúbal

Em 28 de Fevereiro de 2001, o Jornal da Região (na sua edição de Setúbal e Palmela) publicou um texto meu sobre o poeta Santos Silva, que se iniciava da forma seguinte: «O nome de Tomás António dos Santos e Silva não dirá muito à maioria dos setubalenses, apesar de constar na toponímia da cidade. O jornal A Mocidade, de 1 de Março de 1909, disse ter sido este poeta cruelmente perseguido pela fatalidade e, se isso foi verdade em vida, não foi menos verdade depois da sua morte. Com efeito, a memória tem tido tendência para apagar o nome de Santos e Silva: por um lado, o largo que tem o seu nome e onde se localizava a casa em que nasceu é incaracterístico e de escassa circulação; por outro lado, a casa foi demolida há anos, surgindo no seu lugar um edifício de vários andares; a acrescer, houve ainda o facto de a lápide que estava no exterior da casa que foi berço do poeta ter sido removida com a demolição e não ter havido a iniciativa de assinalar a ligação do poeta ao dito arruamento; finalmente, a sua obra não está divulgada, tendo o poeta sido remetido para o rol dos esquecidos.»
O tempo desvenda-nos sempre alguns mistérios e a edição de O Setubalense de hoje mostra aos leitores o destino da dita lápide numa reportagem sobre alguns sem-abrigo que usam a divisão de um prédio renovado, na Rua Francisco José da Mota. Segundo o jornal, as obras de recuperação terão abrangido também o prédio traseiro, onde nasceu, em 1751, o poeta setubalense Tomás António dos Santos e Silva, amigo de Bocage. A lápide que existia nessa casa, alusiva ao poeta ali nascido, terá ficado abandonada no chão e um morador arrecadou-a e preservou-a, “devido ao seu significado histórico”. O mesmo morador lamenta ao jornal que a lápide “não tenha sido devidamente conservada e afixada na fachada da renovada casa”.
Pois ainda se está a tempo, assim haja conjugação de vontades! A memória desta terra agradeceria o gesto da reposição.
Aqui reproduzo a fotografia de O Setubalense com a lápide encontrada, cuja inscrição é a seguinte: "N'esta casa nasceu em 12 de Abril de 1751 o distincto Poeta Thomaz Antonio dos Santos Silva na Arcadia Thomino Sadino /A redacção de A Mocidade por subscripção publica mandou collocar esta lapide no anno de 1909".
Uma lápide pela memória, em 1919
Foi no seu número centenário, em 1 de Março de 1909, que o quinzenário sadino A Mocidade, em artigo sobre o poeta Santos e Silva, lançou o seguinte repto aos leitores e à população de Setúbal: "sendo hoje conhecida a casa onde este poeta nasceu, bom seria tratar-se da colocação de uma lápide comemorativa de tal facto, para que de futuro se não perca a indicação desta casa célebre".
A ideia teve logo adeptos e, ao longo de vários números, o jornal foi publicando listas de subscritores, informando, no número do início de Abril, que já obtivera de António João Guerreiro, proprietário da casa, autorização para a colocação da lápide. Tal manifestação aconteceu em 30 de Dezembro de 1909, tendo a lápide sido descerrada por José Maria da Rosa Albino, vereador representante da Câmara Municipal, com os seguintes dizeres: "Nesta casa nasceu em 12 de Abril de 1751 o distinto poeta Tomás António dos Santos e Silva - na Arcádia, Tomino Sadino. A redacção de 'A Mocidade' por subscrição pública mandou colocar esta lápide no ano de 1909".
O trabalho de cantaria foi da responsabilidade de João Gomes e a colocação da lápide deveu-se ao mestre de obras Francisco Augusto Martins, que ofereceu os trabalhos. Na subscrição, foi conseguida a verba de vinte mil e quinhentos réis, de que foram gastos dezoito mil réis para pagar a pedra e o trabalho de cantaria. Quanto aos dois mil e quinhentos réis sobrantes, por iniciativa do jornal, foram parar direitinhos "ao estimado poeta popular Sr. António Maria Eusébio, o Cantador de Setúbal", como referia a edição do jornal do dia 15 de Janeiro de 1910.
Tomás António Santos Silva:
notas para uma biografia
Em 12 de Abril de 1751, nasceu numa casa que se situava no Largo do Cemitério, mesmo em frente da porta do Cemitério da Misericórdia, o filho de Manuel António dos Santos e de Francisca Inácia. A criança recebeu o nome de Tomás António dos Santos e Silva.
A casa tinha, no princípio do século XIX, o nº 2 sobre a porta e o largo tem hoje o nome de Santos e Silva e apresenta uma configuração incaracterística, estando reduzido a dois becos, ambos a sair da Avenida Jaime Cortesão, com circulação restrita. Tendo a casa sido demolida, hoje pode ser vista através de postais que circulavam no início do século XX ou por meio de reproduções fotográficas.
Os pais de Santos e Silva eram pobres e a criança apresentava deficiências nos pés logo à nascença. A família cedo reparou que Tomás tinha inclinação para as letras e, graças à protecção do seu padrinho, o desembargador Tomás da Costa de Almeida Castelo Branco, o jovem estudou, tendo chegado a frequentar a Faculdade de Medicina coimbrã. No entanto, devido ao falecimento do seu protector, os estudos foram abandonados e o jovem dedicou-se à escrita, pois já versificava desde os 15 anos e dominava várias línguas. A marca do desgosto não o largou e a morte roubou-lhe a mulher com quem estava para casar.
Com cerca de 30 anos, vivia já em Lisboa, onde se dedicava à literatura dramática. Integrou a academia "Nova Arcádia", onde escolheu o nome de Tomino Sadino, numa evocação da sua terra, tal como o fizera Bocage, conterrâneo com o qual Santos Silva privou e de quem foi amigo. Com 45 anos, adveio-lhe a cegueira e passou a viver no Hospital de S.José, graças à protecção dos enfermeiros-mores D.Lourenço de Lencastre e D.Francisco de Almeida Melo e Castro. Porém, a administração seguinte retirou-lhe os privilégios e não lhe deu abrigo. Santos e Silva voltaria para o hospital, em 1814, já aniquilado pela doença, falecendo em 19 de Janeiro de 1816.
Depois de ter cegado, Santos e Silva não parou na escrita e socorreu-se de amanuenses que lhe preparavam os seus textos e com quem repartia o pouco que tinha. Num texto com cunho autobiográfico, que serve como introdução à sua epopeia Brasilíada ou Portugal Imune e Salvo (1815), Santos e Silva fez alusão às circunstâncias em que escrevia, considerando que muita gente não as supunha: "Nesta Casa [o Hospital], eu entrei totalmente cego, estropiado, em uma idade já provecta; e nela eu me conservo sem outro auxílio mais que o proveniente de meus tais ou quais escritos, de pouco ou nenhum momento em dias tão calamitosos, e a Caridade, que diariamente recebo, da qual me vejo comummente obrigado a repartir com os meus amanuenses, aproveitando-me dos primeiros que me aparecem, qualquer que seja o seu préstimo". Para Santos e Silva, a urgência era escrever e tal desejo e as suas possibilidades não eram compatíveis com grandes escolhas quanto aos amanuenses. Aliás, noutro passo do mesmo texto, referiu não ter possibilidades de grande revisão, publicando o poema a partir "do seu primeiro borrão".
Nessa mesma memória, Santos e Silva revela profundos conhecimentos sobre autores clássicos e sobre as mais recentes sumidades e sobre as características da epopeia, antecipando uma defesa quanto a eventuais críticas ao poema épico de uma dúzia de cantos que editava.
Os antecedentes do poema Brasilíada (que teve 314 subscritores, conforme lista apresentada no final do volume) são curiosos e reflectem o sentir do início do século XIX. Santos e Silva era admirador de Napoleão e, depois da batalha de Austerlitz (ocorrida em Dezembro de 1805), iniciara um poema em honra do corso, intitulado "Napolíada". Mas, em 1807, devido à primeira invasão francesa com Junot, Santos e Silva rasgou o poema e compôs Brasilíada com o objectivo de manifestar o seu "zelo e amor da Pátria".
Entre outras obras, Santos e Silva deixou Écloga de Tomino e Laura (1781), Estro de Tomás António dos Santos e Silva Cetobricense (1792), Por Ocasião do Sempre Deplorável Falecimento do Excelentíssimo Senhor D.Pedro Caro e Sureda (1806), Silveira (1809) e El-Rei D.Sebastião em África (póstumo, 1817). Um dos seus poemas mais conhecidos, com várias edições, é "Sepultura de Lésbia - Poema em 12 Prantos", em memória da noiva falecida.
João Reis Ribeiro. Histórias da região de Setúbal e Arrábida (vol. 1).
Setúbal: Centro de Estudos Bocageanos, 2003, pp. 72-76.
[Fotos: Lápide na actualidade (trissemanário O Setubalense, de 03.Set.2008); Tomás António Santos Silva, por Luís Resende e F. T. de Almeida (1815); rostos de Poesias Originais e Traduções (1806) e de Brasilíada (1815)]