sábado, 21 de março de 2009

Outras leituras - O estado das coisas anormais

Mais um dia em que quase nada foi normal
Não é normal que passe na televisão do Estado um anúncio a uma rádio do Estado em que se dá a entender que as manifestações são "contra quem quer chegar a horas". Que a locução seja feita pela directora adjunta da Antena 1, Eduarda Maio, autora do livro Sócrates: O Menino de Ouro. Que o ministro Augusto Santos Silva considere que isso é um assunto editorial. Que o anúncio tenha estado vários dias no ar sem ninguém se incomodar (ou ver?) e que só se tenha tornado tema controverso quando o PÚBLICO pediu a dirigentes sindicais para se pronunciarem sobre o seu conteúdo. Como também não é normal que o PSD reaja considerando que "a tutela da Antena 1, rádio paga pelos contribuintes, (...) deve tomar uma atitude digna, e só há uma: demitir os responsáveis que puseram o anúncio", pois a tutela é o Governo e não deve caber ao Governo nomear ou demitir responsáveis editoriais. Por isso não é normal o silêncio dos directores editoriais da RDP.
A única coisa que se salva no meio de tudo foi o parecer dos provedores do telespectador, Paquete de Oliveira, e do ouvinte, Adelino Gomes, que recomendaram que o spot fosse imediatamente retirado, utilizando uma argumentação seca e sólida.
Não é normal que o Governo tenha imposto aos proprietários envolvidos na identificação e abate dos pinheiros afectados pela doença do nemátodo o dever de segredo sobre a dimensão do problema, como o PÚBLICO noticiou ontem. Não há nenhuma "questão sanitária" que justifique esse segredo, da mesma forma que não houve quando, por exemplo, se detectavam "vacas loucas" ou aviários contaminados. Ou há uma explicação racional - o que parece difícil, pois não há aqui segredos comerciais ou segredos de Estado - estamos perante a aplicação discricionária de uma nova "lei da rolha".
Não é normal, é mesmo uma vergonha, o tempo que está a demorar a nomeação de um novo provedor de Justiça. Não é normal que os nomes dos putativos candidatos saltem para a praça pública. Ou que não se esclareçam os critérios que devem presidir à escolha dessa figura, em especial se é ou não conveniente que numa democracia se evite uma excessiva concentração de cargos públicos nas mãos de figuras próximas do partido no poder. Ou que ninguém fale - nem o PSD, pelo que se percebeu da argumentação de Ferreira Leite - da importância de existirem sistemas estáveis de pesos e contrapesos e não apenas trocas de nomes, ou rotatividades, entre os dois maiores partidos.
Não é normal defender, como ontem defendeu o primeiro-ministro José Sócrates, que os bancos europeus sejam proibidos de trabalhar com paraísos fiscais, mesmo que essa decisão não seja tomada a nível mundial durante a próxima reunião do G20. Uma coisa é defender uma maior transparência e regulação nos mercados financeiros - algo de que Portugal nem se deve orgulhar muito face ao que se tem vindo a saber sobre os casos BPN e BPP, para não falar do que antes se passou no BCP e do que ainda não se sabe sobre a forma como a CGD tem actuado... -, outra bem diferente é defender o suicídio do sistema financeiro europeu que, forçado a actuar em condições mais desfavoráveis que os outros sistemas bancários, só poderia definhar, agravando ainda mais a crise.
Não é normal que, depois ter impedido a entrada em Angola de qualquer jornalista do PÚBLICO, do Expresso e da SIC aquando das recentes eleições legislativas, as autoridades de Luanda tenham voltado a fazê-lo agora quando estes três órgãos de informação solicitaram vistos para acompanharem a visita do Papa Bento XVI. Tal como não é normal que então e agora não se tenha ouvido uma voz, um tremor, nem sequer um tímido zumbido de protesto por parte das autoridades portuguesas.
Não é normal, mas é assim quase sempre, quase todos os dias. Por isso o que é mesmo anormal é sobrevivermos como nação independente há quase nove séculos. Isso, sim, é um feito. Até porque foi previsto pelos romanos, que terão dito que por aqui vivia um povo que não se governava nem se deixava governar. Será que já então se desgovernava em silêncio?
José Manuel Fernandes. Público: 21.Março.2009

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