domingo, 26 de junho de 2011

"A última entrevista de José Saramago", por José Rodrigues dos Santos

“José Saramago, cidadão do mundo e escritor universal, é nosso; nosso, da lusofonia. A sua casa, a verdadeira identidade que o moldou e fez dele o que ele foi, é, afinal, a língua portuguesa.” É este o parágrafo que remata A Última Entrevista de José Saramago, de José Rodrigues dos Santos (Lisboa: Gradiva / RTP, 2011), agora publicada em edição autónoma, mas que já integrou o livro Conversas de Escritores (Lisboa: Gradiva, 2010) do mesmo autor. O parágrafo vem a propósito da casa Saramago em Lisboa e por causa de um plátano, mas singra por essa afirmação que conjuga identidade e lusofonia…
O pretexto desta edição será o primeiro aniversário da morte de Saramago, momento adequado para que as palavras de Saramago, numa reflexão sobre a sua obra, sejam iluminadas. A entrevista ocorreu oito meses antes da morte do autor de Memorial do Convento na biblioteca do Palácio Galveias, em Lisboa, local escolhido por Saramago, que o próprio justificou: “Foi nesta biblioteca que descobri a literatura. A minha família era muito pobre e não havia livros lá em casa, de maneira que, quando eu tinha os meus dezassete ou dezoito anos, descobri esta biblioteca e vinha para aqui ler sem que ninguém me guiasse na leitura. Descobri a literatura sozinho.”
A entrevista passa pelo conjunto da obra saramaguiana desde Terra do Pecado (de 1947) até Caim (2009), com revelações sobre a importância dos seus títulos, como faz, ao responder à observação de que Memorial do Convento (1982) será a obra do reconhecimento público: “Há um outro livro que, no fundo, é parente directo do Memorial e do Levantado do Chão [1980], mas talvez mais do Memorial, que é a Viagem a Portugal [1981]. Esse livro de viagens, que parece ser só isso, não podia ter sido escrito noutra altura nem ter outros companheiros de viagem que não fossem aqueles.”
Interessante é a resposta de Saramago quando Rodrigues dos Santos lhe fala da actividade de tradutor e das possíveis influências que as obras traduzidas por Saramago (cerca de 60) poderão ter tido na sua obra: “O autor é um tradutor. É alguém que traduz um sistema de sinais: emoções, pensamentos, sonhos, devaneios. Isto é um trabalho de tradução, porque tudo isso constitui uma linguagem que, se não encontrar uma forma comunicável de transmissão, fica cá dentro da cabeça de cada um de nós.” Esta interpretação vai encontrar eco mais adiante, no momento em que Saramago defende o valor da linguagem na construção literária – “Uma história bem construída é indispensável; aquilo tem de estar estruturado, tem de manter-se de pé. Mas eu costumo dizer que, da mesma maneira que o corpo humano tem setenta por cento de água, a literatura é setenta por cento de linguagem.”
Homem de criação e de ideias, Saramago esmera-se na comparação da construção de um romance com o crescimento de uma árvore – um e outra têm um limite que se impõe em certa fase do crescimento. Fiel às convicções, justifica a importância da palavra “não”, pela sua simbologia associada à revolução, ainda que se corra sempre o risco de uma revolução se tornar num novo “statu quo”, “num novo sim”.
A questão da pontuação – uso das vírgulas, transgredindo a norma do registo do discurso directo, ou dos nomes próprios com minúsculas – usada por Saramago nas suas obras tinha de estar presente. E a resposta teria de ser artística: “Há uma razão básica que é uma tentativa, talvez nem sempre lograda, de aproximação do discurso escrito ao discurso oral”, afirmação justificada com o ritmo da linguagem e da vida – “Nós falamos como quem faz música; toda a fala e toda a música se constrói com sons e pausas.”
Merece ainda uma referência a observação de Saramago quanto à oportunidade de, no ensino secundário, ser estudado o Memorial, “que levanta uma infinidade de problemas para os quais os alunos com essa idade não estão nada preparados”. Em alternativa, propõe que seja estudada uma obra como A Escola do Paraíso (1960), de José Rodrigues Miguéis, “onde se fala de coisas mais próximas deles”. O leitor que tenha viajado até ao volume de Correspondência 1959-1971 entre Miguéis e Saramago (organizado por José Albino Pereira e publicado em 2010 – Lisboa: Caminho) poderá ver que a admiração e o reconhecimento de Saramago por Miguéis constituem uma marca genuína.
Este trabalho de José Rodrigues dos Santos é ainda um modelo de construção de entrevista. Nela, o entrevistador vai ao encontro «do» e «com o» entrevistado, sabendo muito sobre ele, conhecendo a sua obra, tentando suscitar explicações, deixando que o entrevistado se manifeste a colaborando numa espécie de leitura da entrevista (ou do entrevistado), tal como acontece no momento em que Saramago explica que, para um romance, tem necessidade de que se lhe apresente uma “ideia provocadora” que reflicta uma preocupação, ainda que, inicialmente, pareça fugir à lógica – nesse momento, intervém Rodrigues dos Santos, observando que, “de um ponto de partida inverosímil, cria uma situação que depois é verosímil nas suas consequências”, exultando Saramago: “Exactamente, exactamente! Você definiu isso muito bem!”

1 comentário:

jardinsproibidos disse...

Gostei muito, o senhor convenceu-me a comprar este pequeno livro :) Muito obrigado, e até uma próxima.