quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Menezes Ferreira, "O fuzilado" (1923)



O fuzilado, de Menezes Ferreira (1889-1936), é novela curta, ao jeito do ritmo de publicação da série em que se integrava – semanal –, tomando para ambiente a Grande Guerra, que outro não podia ser o contexto, cinco anos depois do seu termo, para o narrador – “eu sou um caturra da Grande Guerra e pesa-me deixar passar esta data do 9 de Abril sem lhes contar a lamentável história do meu amigo Harry Budd.” Para um combatente do Corpo Expedicionário Português (CEP), o 9 de Abril era data memorável e este volume da colecção, que saía às quintas, viu o público a 12 de Abril.
O narrador de O fuzilado (Col. “Novela Sucesso”. Lisboa: 1923) explica o efeito da presença na linha da frente sobre a memória, o que serve também de pretexto para justificar o tema: “Os que viveram aqueles torturados momentos da Guerra no tempo do Gross Bertha, dos gases asfixiantes e dos bombardeamentos feéricos do front, mal podem ainda alinhavar meia dúzia de ideias concretas ou quadros definitivos sobre a formidável tragédia” – forma de dizer que as memórias estão ainda muito vivas e não permitem uma distância analítica suficiente relativamente ao vivido, maneira de justificar uma história com laivos de humanidade e de valores, nela preponderando a afirmação da vontade do homem e até uma atitude contrária à guerra.
O tom é crítico quanto ao vivido na frente, um conjunto de “sucessos grandiosos, trágicos, brutais ou miseráveis que, uma vez abertos os diques da ferocidade humana, foram vividos em todos os campos de batalha, tanto de cá como de lá do arame farpado e até muitas vezes ali mesmo na Terra de Ninguém.”
Assim contextualizado o estatuto da memória, o narrador, dialogando com o leitor e aproximando os espaços e o tempo, convida: “os senhores não se importarão decerto a ir comigo ali à Flandres, no norte da França, onde uma mancha cinzenta que é a soldadesca portuguesa se agita, combate e sofre pela maior glória de Portugal”.
Antes de ser contada a história do herói Budd, há ainda lugar para contestar o retrato desfavorável que em Portugal estava feito sobre o CEP, sobretudo porque não eram consideradas as circunstâncias em que os contingentes desembarcaram em França – bem diferentes das que marcavam as tropas britânicas, por exemplo – com ausência de motivação e com medo e ignorância quanto ao saber com actuar perante o desconhecido – “uma vergonha”, conclui o narrador, para testemunhar de seguida que foram necessários três meses para haver mudanças. Se o tom utilizado serve para responder ao que fora a negativa opinião que tinha sido construída sobre o CEP pelos seus detractores – “eu bem sei que os senhores costumam sorrir-se incrédulos quando se fala nos dias afadigados e nos transes perigosos a que frequentemente se sujeitava essa mísera população das trincheiras” –, também não estará ausente uma crítica às parcas condições proporcionadas aos convocados portugueses.
A história do tenente Harry Budd ocupa metade do volume e conta-se rapidamente. Homem habituado aos combates, Budd fora nomeado intérprete das forças portuguesas em Laventie, uma vez que falava castelhano, pois tinha andado pela América do Sul. Apesar de habituado às guerras (participara em vários conflitos), Budd não escapou à chamada neurastenia das trincheiras e, num belo dia, por sua conta e risco, despediu-se dos amigos portugueses, dizendo “já estar chateado de guerras”. O que podia ser apenas uma atitude precipitada teve consequências, pois Budd decidira mesmo a sua retirada e, em presença dos superiores, recusou-se a cumprir uma missão arriscada – ele, que já cumprira tantas! –, tendo declarado por escrito a sua resolução de “não estar disposto a guerrear mais”.
Combatente galardoado por serviços prestados, a sua decisão foi responsável pelo seu infortúnio: “Na madrugada seguinte, quando no horizonte o sol rompia numa enorme sangueira por entre nuvens roxas de tragédia, o tenente Harry Budd, cinco citações, três ferimentos em combates, duas promoções e a Victoria Cross, caía ingloriamente junto aos muros arruinados de uma ferme, varado por uma dúzia de balas de um pelotão de execução.”
A história de Budd, que Menezes Ferreira apresenta, dá a dimensão da tragédia individual do combatente, que, estando no campo de operações, se revolta contestando a guerra e a carnificina. É com uma reflexão desse tipo que a narrativa se conclui: “Assim, o meu infeliz amigo, num supremo arranco de revolta, e com o sacrifício da própria vida, impusera pela primeira vez a sua vontade de homem e dispusera a seu talante da sua carne desprezível de soldado. Os outros que o julguem se puderem.”
Moralizador? O último fuzilamento português de que há notícia ocorreu justamente durante a Primeira Grande Guerra, em Setembro de 1917, quando um soldado condutor foi acusado de tentativa de passagem para o inimigo e o julgamento militar foi no sentido da execução. A história que Menezes Ferreira narra não resulta de traição, antes de uma decisão individual de pôr cobro à guerra e à matança. Mas, num conflito como este, não havia lugar para decisões individuais nem para objecções de consciência nem para recuos. Segundo a lógica bélica, Budd teria de continuar a matar; recusar isso podia ser uma libertação, mas também era matar-se a si próprio.

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