terça-feira, 29 de maio de 2012

Memórias de António Manuel Couto Viana em conversa com Ricardo de Saavedra



António Manuel Couto Viana (1923-2010), nome para sempre ligado à poesia portuguesa e ao teatro, foi exímio memorialista dos outros, servindo-se de uma prodigiosa memória para contar sobre poetas e autores, lidos e conhecidos, sobre épocas e personagens que no seu caminho se cruzaram. Pena seria que a sua vida extremamente preenchida não desse origem a um volume de memórias, contando o seu trajecto sempre diversificado, absolutamente dominado por uma dinâmica que nunca lhe permitiu a paragem na escrita, tendo mesmo, na fase final da sua vida (a partir de 2004), encetado o caminho do conto. É assim de saudar o aparecimento da obra assinada por Ricardo de Saavedra, intitulada António Manuel Couto Viana – Memorial do coração (Conversa a quatro mãos), recentemente editada (Lisboa: Quetzal Editores, 2012).
O título informa-nos sobre a organização da obra: é, com efeito, uma entrevista, uma longa entrevista, edificada sobre onze capítulos e cerca de cinco centenas de páginas, resultante de um tempo de conversas de aproximadamente cinco anos (desde Março de 2005), tendo o entrevistado ainda tido a oportunidade de conhecer grande parte da versão escrita.
O que impressiona neste texto é a fidelidade de Ricardo de Saavedra ao tom de conversa de Couto Viana, quase sendo dada a possibilidade ao leitor de “assistir” a este diálogo entre os dois, viajando na memória, por vezes alterando a ordem cronológica, sempre contando histórias da vida ou a propósito dos momentos por que vai passando a revisitação. Bem marcante é o poder descritivo e a ordem narrativa de Couto Viana, conversador e nato contador de histórias, nunca deixando que a sua história ande apenas em redor de si, antes mostrando a sua vida na relação com os outros, na dedicação às artes – da literatura e da representação – e aos prazeres – gastronomia, leitura, viagens – e na luta pela sua independência e pelo seu caminho.
O nível de linguagem é sempre elevado, culto, com observações de uma nobreza de sentimentos e de saberes que impressionam, não só pela forma airosa como todo o seu trajecto é partilhado, como pela meticulosidade posta numa memória que deve ser um contributo para a história. São de ternura evidente as palavras que deixa sobre a sua “cidadezinha”, Viana do Castelo, e sobre o ambiente e experiências ali vividas, ponto de eterno retorno que sempre o chamou; são de realização assumida as entradas pela memória da sua vida dedicada ao teatro, enquanto actor, empresário, autor, cenógrafo, criador de companhias, num périplo que passa pelo Teatro-Estúdio do Salitre, Teatro da Mocidade, Teatro da Campanha Nacional de Educação de Adultos, Teatro do Gerifalto, Oficina de Teatro da Universidade de Coimbra, Grupo Português de Teatro (de Macau), entre outros, percebendo-se que a história do teatro português da segunda metade do século XX não estará completa se o nome de Couto Viana for omitido; são quase fílmicas as lembranças da chegada a Lisboa (em 1946) e os contactos com os escritores que sempre lera e de quem se ia tornando amigo ou com aqueles que, tal como ele, se iniciavam na aventura literária, atingindo especial elevação as referências àqueles que foram amigos de sempre, como David Mourão-Ferreira ou Fernando de Paços, por exemplo; é contributo para a história literária o seu esmiuçar pelas revistas e publicações em que participou ou a associação que faz de muitos momentos da vida a outros tantos instantes de poesia; é prestação para a história do teatro a dinamização a que procedeu no âmbito do teatro infantil, na “descoberta” de actores, no gesto de levar o teatro aos mais diversos recantos do país; é retrato de desolação a lembrança dos momentos menos bons provocados por uma remissão para o esquecimento a partir de 1974, com o consequente abandono por parte de muitos amigos, ou por um jogo de influências movido em Macau que lhe deixou feridas e desgosto, mesmo na apreciação destes casos não se vislumbrando linguagem menos nobre, antes exprimindo-se o lamento, ao mesmo tempo que a literatura se anuncia como contínua tábua de salvação.
António Manuel Couto Viana diz-se na alegria do reencontro com a sua obra, longa viagem que também o transportou ao oriente de Camões, deixando-se o leitor levar por um guia que entra na China e noutras orientais paisagens, vivamente descritas, quase se estando mais perante uma recriação literária do que na presença de algo que se diz de memória, de tal forma a riqueza das cores, das sensações, das emoções pulsa por estas páginas de reconstituição de uma vida, o mesmo se podendo dizer a propósito do pormenor na narração e na descrição do encontro com Savimbi na Jamba. O próprio entrevistador tem momentos em que interrompe a conversa para, apreciativamente, elogiar a memória do entrevistado, registo que se destinará também ao leitor, desta forma desperto – ou lembrado – quanto à realidade deste livro, que não é uma ficção, antes o retrato de uma vida.
Preocupações máximas de Couto Viana são a sua obra, os seus amigos e os seus lugares. Da obra vai falando enquanto mostra o regulador que ela foi da sua vida, com o verso sempre a renovar-se e o lirismo continuamente no seu caminho; dos amigos tem a preocupação de registar os nomes e os traços, às vezes em escassas referências, mas sempre querendo inscrevê-los no seu percurso e por vezes pedindo antecipadamente desculpa de qualquer omissão; os espaços, vai-os revisitando, com uma ternura particular sobre Viana do Castelo, berço da vida e da obra sobre o qual diz: “Viana influencia toda a minha obra! A infância marca, para sempre, a vida de um poeta e a minha foi toda passada em Viana, que continua a ser uma cidade sedutora. A timidez aguçou-me o sentido de observação e toda a minha meninice e juventude foi plena de motivos de interesse, rica de momentos inesquecíveis, vivida num ambiente familiar que muito contribuiu para estimular o meu crescente gosto pelas artes. Muitos dos meus escritos narram tudo isto, decorrem deste acumular de sensações e sentimentos, com raiz nos tempos em que cresci em Viana. E a raiz nasce no coração.”
O final do ciclo de conversas coincide com o termo da vida de Couto Viana, cujas últimas palavras para o entrevistador constituem um pedido para que o livro não esmoreça, para que o livro exista, para que a memória perdure. Um derradeiro capítulo mostra o sentimento de perda de um amigo que se tornará presente pela sua obra, extensa obra, de poeta, que António Manuel Couto Viana se chamava, nome que constitui “um decassílabo perfeito”, como Ricardo de Saavedra faz questão de lembrar logo na primeira frase do volume.
O leitor encontra ainda quarenta páginas, em dois cadernos, a constituírem um álbum fotográfico, disperso por geografias, por tempos e por amizades. E, no final, uma exaustiva lista de bibliografia activa ordenada por modos de escrita e por assuntos (poesia, teatro, contos, ensaios, memórias, gastronomia, traduções e adaptações, antologias, prefácios e apresentações), uma circunstanciada resenha da teatrologia e um índice onomástico (a que ainda poderia ter sido acrescentado um índice de títulos). A fechar, na lista dos “agradecimentos”, Ricardo de Saavedra relembra a construção do livro – desde a primeira reunião dos dois já velhos amigos, em 18 de Março de 2005, com a intenção de se contar esta vida, foi sendo construído “um livro nascido de conversas, registos avulsos e papéis dispersos, que cresce[u] ao sabor dos temas sem cuidar de cronologias, confiado quase exclusivamente na memória elefantina do interlocutor.”
Umas boas memórias de António Manuel Couto Viana. Num memorial também do coração!

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