quinta-feira, 19 de julho de 2012

Maria Barroso: "Cartas a Mário Soares" e uma biografia



Aos 87 anos, Maria Barroso resolveu partilhar a narrativa da sua vida com os leitores através da publicação das suas memórias e da correspondência mantida com o marido, Mário Soares, entre 1961 e 1974, num projecto co-editado pelo semanário Sol e pela Fundação Pro-Dignitate. É um conjunto de 18 volumes, publicados a ritmo semanal, em que a epistolografia ocupará 8 deles (Cartas a Mário Soares 1961-1974) e a biografia os restantes (Álbum de memórias). O trabalho foi coordenado pelo jornalista Vladimiro Nunes, que anotou as cartas e redigiu os volumes de cunho biográfico. Até ao momento, foram publicados cinco volumes deste projecto [o próximo sai amanhã, com o jornal Sol], sendo quatro deles da correspondência.
O primeiro volume da biografia ocupa-se sobretudo da história da ascendência de Maria Barroso, incidindo bastante sobre a actividade do pai, militar e republicano, alvo de perseguições e de prisões graças aos compromissos assumidos. O final do volume encontra Maria Barroso na sua infância em Setúbal, aos dezasseis meses (em Setembro de 1927).
Preocupação de Vladimiro Nunes é de contextualizar a narrativa no Portugal da época, com referências adequadas à vida política, cultural e social do país, com indicações cronológicas sobre acontecimentos e sobre outras personalidades que viriam a ser referências para o século XX português e que viriam a cruzar-se também com o percurso de Maria Barroso e de Mário Soares em muitos casos. Para a elaboração deste trajecto biográfico, Vladimiro Nunes teve como fontes a própria Maria Barroso, um vasto leque de amigos e de familiares da biografada e o arquivo de família, assim se justificando o título, que alia a capacidade da memória e a característica antológica dos eventos, das histórias e das personagens que fazem uma vida.
Quanto aos quatro volumes de correspondência já publicados, o leitor entra nos tempos de ausência de Mário Soares relativamente à família, fosse por estadias longas no estrangeiro, fosse pelos tempos de cárcere ou de desterro. As cartas de Maria Barroso para o marido são um ritual diário nesses tempos de ausência, muito próximas da escrita diarística, relatando o acontecido naquele dia, com considerações a propósito, por onde passam os registos da vida do Colégio Moderno (sobre os professores, sobre a gestão e organização, sobre as inscrições, sobre as obras, sobre as colónias de férias), o acompanhamento dos filhos João e Isabel (nos estudos, nas relações sociais, na educação), o cuidado prestado a familiares (sobretudo ao sogro, João Soares, na vigilância da sua saúde, no acompanhamento, na gestão das relações familiares), a gestão do património familiar (acompanhamento das obras na casa de Nafarros, da actividade no escritório de advocacia de Mário Soares e manutenção da casa de Cortes), as relações sociais (manutenção das amizades e presenças em eventos, muitas vezes em representação do casal ou do marido), a preocupação em minimizar os efeitos do afastamento (fazendo chegar à prisão livros, refeições por si confeccionadas, marcando presença nos escassos tempos de visita), as emoções (provas de afecto, considerações sobre a vida do casal, incentivo contra a solidão e a humilhação do estatuto de preso), a vida cultural em que estava envolvida (leituras, filmagens, sessões de poesia e de teatro).
Percebe o leitor que a intenção de Maria Barroso era a de tornar o mundo familiar presente a Mário Soares, assim impedindo que as interrupções da vida em comum equivalessem a descontinuidades e possibilitando que os projectos em que estavam envolvidos pudessem continuar a ser gizados a dois.
As cartas de Maria Barroso assumem também essa perspectiva de luta contra a solidão, passeando pelos relatos do quotidiano, mas demonstrando ainda as angústias e as dúvidas de quem não quer vacilar, de quem quer ser presente e vencer a distância, muitas vezes confessando o exercício de aprendizagem que aqueles afastamentos lhe proporcionam à medida que cresce a admiração pela forma como o marido enfrenta a adversidade da perseguição política.
No fundo, estas cartas são o retrato, a fixação do tempo comum possível naquelas circunstâncias, uma prova de cumplicidade efectiva na forma de fazer a vida com sentido, sempre com horizontes de esperança, muitas vezes matizados com as cores das plantas do jardim ou com os tons do dia, a evocarem momentos passados ou recortados por alusões a versos e à memória. São cartas que apaziguam quem as escreve e que pretendem idêntico efeito no destinatário, que se alicerçam na partilha e na comunhão para que o sofrimento das lonjuras seja, pelo menos, esbatido. Um belo documento humano e cultural, um bom testemunho de sinceridade e do que pode ser a vida de pessoas que caminham na mesma direcção!

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Homem (e mulher) – “Chego a pensar se de facto os homens merecem tanta ternura, tanta dedicação como aquela que algumas mulheres sabem dar. Afinal de nada serve a amizade, a dedicação, a profunda ternura de anos e anos lado a lado. A mulher chega a certa altura e está velha, gasta e já não serve – há que substituí-la por outra mais jovem, mais válida. Esta confusão, esta inversão de valores ou nos conduzem a uma atitude cínica e egoísta ou nos levam ao desespero. Sinto-me verdadeiramente atordoada com tudo isto!” [Cartas a Mário Soares 1961-1974 (vol. 2) – a propósito do divórcio previsto de um casal amigo, em carta de 19-08-1966]
Esperança – “A esperança é a mais linda flor que eu conheço mas a terra dela é o coração dos homens.” [Cartas a Mário Soares 1961-1974 (vol. 3) – em carta de 29-02-1968]
Olhar em frente – “O voltarmo-nos excessivamente para dentro de nós próprios é que nos conduz muitas vezes a situações de angústia e de nervosismo. Se olharmos para a frente, para o que é jovem e espontâneo, por muito duro que seja o que nos rodeia, por muito violenta e injusta que seja a realidade que tenta esmagar-nos, há sempre maneira de encontrarmos dentro de nós a força e a coragem de seguirmos o nosso caminho, que é o caminho da dignidade e da compreensão humana.” [Cartas a Mário Soares 1961-1974 (vol. 4) – em carta de 11-06-1968]
Palavra – “Duas pequenas palavras, repassadas de ternura e saudade, bastam, por vezes, para animar um coração desolado, para reanimar uma pessoa fatigada.” [Cartas a Mário Soares 1961-1974 (vol. 4) – em carta de 08-07-1968]

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