quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Luísa Todi vista por Mário de Sampaio Ribeiro há 70 anos




O livrinho já carrega umas décadas em cima de si. Tanto como 70 anos, que passarão em 12 de Junho deste ano. É uma biografia de personagem ligada a Setúbal e lê-se em pouco mais do tempo que leva uma palestra. Refiro a obra Luísa de Aguiar Todi, de Mário de Sampaio Ribeiro (Lisboa: Revista “Ocidente”, 1943), inserida numa colecção dedicada à cultura artística, cerca de 90 páginas de história com notas e gravuras.
Formado por três capítulos, este estudo inicia-se com um olhar para o mundo que nos envolve, numa viagem pela cidade quotidiana, desta vez com olhar menos distraído. É que, “normalmente, qualquer de nós, ao calcorrear na parte de Lisboa, que tem pergaminhos, não atenta nas coisas por que adrega de passar, alheado que vai, se não divorciado, do cenário que o rodeia”. O pretexto pode ser o nome de uma rua, por exemplo. E aquela antiga Travessa da Estrela fora rebaptizada, recebendo o nome de Luísa Todi (n. 9.Janeiro.1753) por edital camarário de Junho de 1917, uma vez que, no número 2 daquela artéria, vivera a artista e aí falecera no primeiro dia de Outubro de 1833.
Quase um século depois do desaparecimento da cantora, em 1934, Mário de Sampaio Ribeiro foi convidado para palestrar em Lisboa sobre esta setubalense, conferência que retomaria oito anos mais tarde, em 24 de Julho de 1942, ao repeti-la a convite do grupo “Amigos de Lisboa”. Cerca de um ano depois, saía o livrinho, que o autor apresenta como “refundição parcial” da comunicação de 1934, enriquecida com gravuras e notas. Um pretexto para a repetição da palestra foi o facto de, poucos dias antes, o governo ter sido autorizado a adquirir a uma descendente de Luísa Todi o “célebre quadro que a Vigée-Lebrun pintou, em Paris, no ano de 1785”, retratando a lírica setubalense, tela que importou em “vinte e cinco contos” e se destinava a “ser incorporada no futuro museu do Conservatório Nacional de Música”.
No segundo capítulo, o autor imagina o filme que permite o encontro com Luísa Todi, a biografada, “em dia canicular”, saindo manhãzinha rumo à igreja, amparada no braço de uma outra personagem feminina, sua filha. Cerca de uma hora depois, regressavam as duas a casa e da mais velha se voltaria a saber apenas no dia seguinte. Era este o quotidiano daquela “velhinha, de aspecto tão grave e respeitável”, que passava os dias recolhida no lar, depois que perdera a visão, a recordar os tempos passados.
E assim estava dada a entrada para o mais extenso dos capítulos, em que o leitor revê, pelos olhos da memória da biografada, a sua vida de glória e de arte, de uma carreira internacional, não isenta de invejas, em salões nobres, na presença de régias figuras e de outros artistas de próximo gabarito, num processo de recuo no tempo. Mário de Sampaio Ribeiro faz uso intenso de bibliografias, de notícias da imprensa e de outros testemunhos para que a narrativa seja credível, nunca esquecendo o acompanhamento emocionado da história pela sua personagem – chegada a biografia ao final, “fundo suspiro rematava tão longo desfiar de saudades, que, a despeito de seu amargo travo, eram o consolo que sua atribulada alma encontrava para fazer esquecer as trevas em que o Destino a mergulhara para sempre.”
O terceiro capítulo contém já um olhar do apreciador e estudioso de música e do percurso de Luísa Todi, procurando revelar ao leitor quais os dotes que permitiram a chegada da cantora tão longe, com delirantes públicos e impressionantes actuações. “A voz da Todi era de contralto, embora um tudo-nada mais extensa que de uso. Subia mais um bocadinho e, nas notas agudas, adquiria um timbre velado, que lhe era peculiar e que a artista aproveitava sabiamente para conseguir certos efeitos.” O temperamento artístico da cantora é sublinhado, associando o prodígio do seu canto à capacidade de representar, de tal forma que conclui Sampaio Ribeiro: “O cantar da Todi criava ambiente de êxtase e de encanto tais que o auditório como se não lembrava de aplaudi-la. Só depois de desvanecida essa como embriaguez as palmas irrompiam e então, a partir desse momento, a multidão electrizada devinha como possessa e aclamava com delírio a artista privilegiada”.
Quase metade do livro é composto por cerca de meia centena de notas, eivadas de um discurso em que pesa mais o tom documental e de investigação, ainda que comprovando e seguindo a par a narrativa que foi sendo construída. Por aqui passam informações documentadas sobre a sua biografia (desde o seu nascimento em Setúbal), sobre os recursos utilizados, sobre a investigação levada a cabo pelo autor, sobre os retratos que em honra de Luísa Todi foram criados, sobre a recepção havida às suas interpretações, sobre os desaires que afectaram a protagonista (a morte do marido, o desastre portuense da “ponte das barcas”, a cegueira), sobre a memória que dela ficou e sobre as homenagens que muitos apreciadores lhe prestaram ainda em vida.
Quanto a reconhecimento póstumo, também o autor o não esquece, tal como se pode ler numa nota em que aborda a questão do centenário da morte da cantora, ocorrido em 1933, aí destacando o papel desempenhado pela cidade onde ela nasceu: “No 1º de Outubro de 1933, ao completar-se o centenário da morte, foi inaugurada em Setúbal, no chamado Parque das Escolas uma pequena glorieta (desenho de Abel Pascoal, escultura de Lepoldo de Almeida e construção de Abílio Salreu) em honra da cantora. O busto da Todi é obra digna de apreço e o pequeno monumento (actualmente deslocado para a avenida Luísa Todi) foi descerrado por Leopoldo Tomás Todi Gonçalves, trineto da artista. Lisboa ficou de levar a efeito a sua comemoração. Projectaram-se, como sempre, coisas espaventosas, mas… não se fez nada. A única celebração – tardia e desluzida – foi a minha conferência na tarde de 8 de Julho de 1934, a meio da rua Luísa Todi.” É interessante este reconhecimento da iniciativa sadina perante a discussão e incumprimento da capital…
A capa do livro reproduz o perfil de Luísa Todi, traçado numa gravura anónima veneziana de 1790, evocativa do desempenho da cantora na obra Didone abbandonata, justamente a mesma imagem que serviu para modelo da recente escultura devida a Sérgio Vicente, exposta no exterior do Forum Municipal Luísa Todi, em Setúbal, desde Setembro passado.

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