domingo, 17 de novembro de 2013

Como Terry Deary conta a Primeira Grande Guerra aos jovens...



Adjectivar a Primeira Guerra Mundial com o qualificativo “terrível” será talvez pouco. Mas, ao tê-lo feito dessa maneira, quando escreveu A terrível Primeira Guerra (Mundial), em 1998 (com tradução portuguesa em 2001, nas Publicações Europa-América), Terry Deary (n. 1946) terá pretendido justificar a entrada do tema e do título na série “História Horrível”, de que é autor, anunciada como “a História que não esconde as piores partes”. A colecção visa um público de jovens leitores e é recheada com ilustrações, que, no caso deste título, são devidas a Martin Brown (n. 1959).
O excerto que Deary escolhe para iniciar a obra é o testemunho de um soldado que esteve nas trincheiras, ali mesmo junto da designada “terra de ninguém”: “Corpos e pedaços de corpos, e coágulos de sangue, e um lodo verde metálico viscoso formado pelos gases explosivos flutuavam à superfície da água. Os nossos homens viviam e morriam ali, a poucos metros do inimigo. Agachavam-se por debaixo dos sacos de areia e escavavam abrigos nas paredes das trincheiras. Estavam infestados de piolhos. Se cavassem mais fundo para se protegerem melhor, as suas pás encontravam os corpos macios daqueles que tinham sido os seus amigos. Pedaços de carne, pernas com botas, mãos enegrecidas, cabeças sem olhos, caíam sobre eles quando o inimigo disparava contra a sua posição.” Ainda que não sendo revelada a identidade do autor desta descrição, ela não surpreende, pois traça um quadro que vários outros combatentes descreveram, designadamente alguns portugueses.
A abordagem da Primeira Grande Guerra nesta obra surge em capítulos alinhados ao ritmo dos anos em que ela decorreu, com títulos que são, eles próprios, uma leitura dos acontecimentos: “1914 – O ano do primeiro tiro”, “1915 – O ano da guerra total”, “1916 – O ano do Somme”, “1917 – O ano da lama”, “1918 – O ano da exaustão”. Cada uma das partes inicia-se com breve cronologia e o restante capítulo é ocupado com o relato de curiosidades e de pormenores sobre o conflito, sobretudo abordando as formas de viver, não só dos combatentes, mas também dos familiares e das populações, numa quase entrada pelo quotidiano de uns e de outros.
Ao longo da obra, o jovem leitor vai tomando contacto com a situação política europeia da época e com a divisão dos Estados participantes na guerra, com a vida militar, com os marcos dessa fase histórica e com muitas curiosidades sobre que se foi construindo o quotidiano. Mas o que predomina no livro, eivado de humor, é o que aflige o homem que combate na Frente (o soldado comum e não as chefias), independentemente do lado por que lute – são os medos, os hábitos, as crenças, os truques para a sobrevivência, com evidência para a necessidade de aprender a viver uma outra vida, assente em condições precárias, de improvisação e de perigo, frequentemente acompanhado pelas ratazanas e pelos piolhos. Simultaneamente, vão aparecendo referências quanto às formas de vida das famílias, quanto ao papel da mulher nesta guerra e quanto à maneira como a sociedade se foi fazendo sobre ausências ao longo de uma guerra que, em vez de ter sido resolvida em três meses (como era esperado no início), se prolongou por quatro difíceis anos.
Alguns testemunhos vão sendo invocados para este rol de informações e de pequenas histórias, intervalando com apontamentos sobre factos ou pormenores das vivências. Mas o mais importante testemunho é uma aprendizagem ou um alerta que surge no epílogo e relembra a história de um jovem soldado alemão que teve a sorte de não ter morrido quando um obus atingiu a trincheira onde ele e os seus camaradas se encontravam, aquando da batalha do Somme. Sobrevivente que foi, com muitos a caírem mortos ao seu lado, esse soldado ficou com leves arranhões na face e viria a marcar – e de que maneira! – a rota do século XX: era Adolfo Hitler. E, quase a concluir, refere Deary: “Houve muitas tragédias na Primeira Guerra Mundial. Quase todas as famílias em Inglaterra, em França, na Alemanha e na Rússia perderam alguém. Em qualquer cidade ou aldeia poderás ver os nomes dos mortos em monumentos de pedra. Muitos dos homens que se alistaram morreram juntos e deixaram as suas cidades natais desoladas. Mas a verdadeira tragédia não foi essa. A coisa mais cruel de todas foi que a Primeira Guerra Mundial não resolveu quaisquer problemas e não trouxe a paz. Conduziu à Segunda Guerra Mundial e a muito, muito mais miséria, morte e destruição.” Na origem deste segundo conflito do século XX esteve o tal soldado que escapou quase ileso da trincheira do Somme…
Esta conclusão do autor é o pretexto para a recomendação pedagógica com que o livro encerra: “A história pode ser horrível. Mas cada um de nós deve descobrir o monumento aos mortos da guerra mais próximo de onde vive, ir lá e ler os nomes. Depois deve dizer ‘Nunca mais’. Se toda a gente disser isso, com sinceridade, então as mortes não terão sido em vão.” Dois apelos, pois: o de respeitar a memória e a obrigação que todos temos de evitar que a paz seja apenas uma utopia.

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