quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Inês Gato de Pinho: "De Colégio de S. Francisco Xavier a Palácio Fryxell"



Aceite o leitor o convite para subir a Rua Arronches Junqueiro, ali a partir do centro de Setúbal, até chegar ao arco de S. Sebastião, ponto em que atravessa a muralha, desembocando no Largo dos Defensores da República. O espaço anuncia-se vasto e, do seu lado esquerdo, surge-lhe frontaria de casa nobre, com duas torres não muito altas relativamente ao resto da fachada, numa pose rígida quanto baste, reforçada por uma localização algo altaneira, voltada para o Sado, via de entrada na cidade, sobretudo em tempos que já lá vão, talvez na época em que o edifício foi construído…
É neste momento que a história se nos impõe qual demanda por sendas de aventura ou peregrinação pelos itinerários da identidade. É neste momento que nos socorremos da obra De Colégio de S. Francisco Xavier a Palácio Fryxell, de Inês Gato de Pinho (Setúbal: Instituto Politécnico de Setúbal, 2013), guia que nos desvenda as linhas arquitectónicas bem como as linhas por que a história se foi fazendo – a história da construção e longas e diversas entradas na história de Setúbal, uma e outras vogando a par no ondular do passado.
O título do escrito remete-nos para duas utilizações distintas deste espaço – a primeira, devida a ordem religiosa, e a segunda, a utilização próspera e aburguesada – ambas marcando justamente os extremos da vida do edifício até à sua passagem para as mãos do Instituto Politécnico de Setúbal pela década de 1980.
Entre as duas referências constantes no título passou um tempo de cerca de três séculos, o que nos possibilita um recuo até meados de Seiscentos, quando D. João IV assinou autorização para a instalação de colégio jesuíta em Setúbal a fim de que aqui houvesse “pregadores, confessores e mestres que ensinem latim e as ciências necessárias para os sujeitos da terra”.
Corria o ano de 1654 e o despacho régio era datado de 3 de Junho. A essa data, já vários colégios da Companhia de Jesus existiam em Portugal, o mais antigo dos quais localizado em Coimbra desde 1542, a que se seguiram, por ordem alfabética, fundações em Angra do Heroísmo, Braga, Bragança, Elvas, Évora, Faial, Faro, Funchal, Lisboa, Ponta Delgada, Portalegre, Porto, Santarém e Vila Viçosa. O consentimento régio, como resposta a pedido da câmara da vila, em associação com o facto de a ordem dos Jesuítas ter sido herdeira única de André Velho Freire e de sua mulher, D. Filipa de Paredes, levou a que muito rapidamente, em 1655, fosse iniciada a construção do colégio sadino, nos arrabaldes de Palhais, numa área extensa, localizada entre as traseiras da Igreja de Santa Maria e o dito Palácio Fryxell, passando pelos terrenos do Pátio Gago da Silva e da gráfica dos Armazéns de Papéis do Sado.
As instalações serviram os Jesuítas durante cerca de um século, até à expulsão desta ordem religiosa em 1759, depois de forte impulso na reconstrução devida aos estragos causados pelo terramoto. Uma década mais tarde, o edifício passava para outra ordem religiosa, das freiras bernardas, passando a ser, ao longo de uma década, o Real Mosteiro de Nossa Senhora da Nazaré de Setúbal. A partir daqui, a propriedade começou a desmembrar-se e a ter diversificados fins: um teatro com porta para a Rua de Santa Maria nas duas primeiras décadas do século XIX, estabelecimentos comerciais, afectação pelas obras ferroviárias da Linha do Sado, espaço de habitação no Pátio Gago da Silva, fábrica de conservas alimentícias e de conservas de sardinha, fábrica de transformação de cortiça e parque tipográfico, num trajecto que vem até ao século XXI.
A história do edifício que Inês Gato de Pinho nos vai contando, sempre orientada pela pesquisa arquitectónica e tendo em vista o processo das sucessivas reabilitações do edifício, surge eivada de outras histórias, num processo de contaminação com o meio e com o que tem sido a própria narrativa de Setúbal. A investigação levada a cabo, não isenta de dificuldades (sobretudo relacionadas com a inexistência de documentação alusiva a datas importantes do edifício), ultrapassa os limites murais da propriedade e entra nos quotidianos de Setúbal de várias épocas, dando conta das evoluções socioeconómicas, do modo de viver das próprias ordens religiosas (com destaque para a Companhia de Jesus e o seu “Modo Nostro”), dos agentes promotores (que biografa), das vidas de trabalho, num quase reconhecimento de que a localização do espaço permite uma visão de conjunto sobre a comunidade.
À medida que os episódios sobre esta construção vão avançando vai o leitor tendo consciência de que a própria história está a ser construída, não deixando Inês Gato de Pinho de acentuar que algumas das leituras que apresenta são conjecturas que poderão vir a ser contrariadas ou aprofundadas por outros estudos ou por outras descobertas – não podemos esquecer que muitos dos documentos que poderiam fundamentar a história do complexo jesuíta em Setúbal desapareceram na voragem da perseguição à própria ordem religiosa no século XVIII e no incêndio dos Paços do Concelho em Outubro de 1910 e que muitos outros documentos andam dispersos (perdidos?) por instituições várias.

Pelo que revela – de que se podem destacar os casos da localização da igreja do colégio jesuíta, as mutações ou adaptações a que o espaço esteve sujeito, os intervenientes responsáveis por essas alterações, o repositório que a actual capela de S. Francisco Xavier é no respeitante a elementos oriundos de outros espaços de Setúbal e até as possibilidades de investigação no futuro –, este estudo de Inês Gato de Pinho bem se torna importante para a bibliografia sadina, não só na vertente de história da arquitectura, mas também nos domínios da sua história religiosa e da sua história económico-social. Iniciativa louvável, pois, para uma obra que se afigura indispensável para o estudo da identidade setubalense.

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