sexta-feira, 7 de agosto de 2015

"Laudato Si'", a encíclica do Papa Francisco sobre a "casa comum" que temos



Em 24 de Maio, o Papa Francisco dava em Roma a sua segunda carta encíclica, Laudato Si’ – Sobre o cuidado da casa comum (Lisboa: Paulus Editora, 2015), conjunto de seis capítulos e quase duas centenas e meia de parágrafos em que a ecologia e o futuro são tónicas e em que o apelo à política e a cada um pontuam.
O retrato que o Papa traça do mundo quanto ao ambiente que caracteriza a “casa comum” não é novo, todos o temos visto, todos o pensamos. Mas, ao trazer para título da sua carta uma frase da oração de Francisco de Assis («laudato si’», «louvado sejas»), a figura mais ecológica de todos os tempos, e ao dizer que pretende com esta encíclica “entrar em diálogo com todos acerca da nossa casa comum” (perspectiva que cumpre ao citar pensadores de outras religiões, por exemplo), Francisco aponta para a responsabilidade que todos teremos na “desfiguração e destruição do ambiente”.
O ponto de partida é forte: “A Terra, nossa casa, parece transformar-se cada vez mais num imenso depósito de lixo.” Depois, é a passagem por áreas sensíveis para a temática do ambiente – o clima, a água, a biodiversidade, os recursos naturais – até à verificação de que a qualidade de vida humana surge fortemente deteriorada, acentuada pela degradação social, uma visão que pretende chamar a atenção para os decisores (e para todos) em prol de um mundo e de uma vida que possa ser mais justa, sem que tenham de existir os “descartados da sociedade”, porque a casa é de todos. Neste ponto, Francisco é incisivo, porquanto assume um ponto de vista crítico quanto às práticas com os mais fracos – “Muitas vezes falta uma consciência clara dos problemas que afectam particularmente os excluídos. Estes são a maioria do Planeta, milhares de milhões de pessoas. Hoje são mencionados nos debates políticos e económicos internacionais, mas com frequência parece que os seus problemas se colocam como um apêndice, como uma questão que se acrescenta quase por obrigação ou perifericamente, quando não são considerados meros danos colaterais.”
Francisco opta sempre pela chamada de atenção para o sentir destes outros, quase levando cada leitor a pôr-se na pele deles e a entender do mundo do seu ponto de vista. Talvez o mais importante alerta surja quando diz: “É preciso revigorar a consciência de que somos uma única família humana. Não há fronteiras nem barreiras políticas ou sociais que permitam isolar-nos e, por isso mesmo, também não há espaço para a globalização da indiferença.” Forte, esta ideia da “globalização da indiferença” que a todos apanha na onda da globalização que nos avassala!
É imbuído do espírito franciscano que o Papa fala do “gemidos da irmã Terra”, aliados aos “gemidos dos abandonados do mundo”, para assinalar aquela que é uma marca deste tempo – “Nunca maltratámos e ferimos a nossa casa comum como nos últimos dois séculos.” Inevitável é o salto para a definição do que é também a falta grave de hoje – “o pecado manifesta-se hoje, com toda a sua força de destruição, nas guerras, nas várias formas de violência e abuso, no abandono dos mais frágeis, nos ataques contra a natureza.”
O discurso papal vai sendo cadenciado por termos que o asseguram como um contributo para a discussão, de tal forma é vasta a lista de referências presente – desde documentos da Igreja oriundos de todos os continentes (incluindo uma referência a Portugal devida à carta pastoral “Responsabilidade solidária pelo bem comum”, da Conferência Episcopal Portuguesa, de Setembro de 2003) a citações de clássicos (Dante, por exemplo), de invocações dos seus antecessores até à presença de pensadores contemporâneos (Ricoeur, Chardin ou Guardini, entre outros) – ou de tal forma é a apresentação feita através de “propostas” (insistindo na ideia de “proposta”) para uma discussão maior.
O mais importante dessas propostas papais acentua-se a partir do capítulo IV, em que se fala de uma “ecologia integral”, depois de nos anteriores capítulos ter sido feito um retrato do mundo, em muito dominado pela crise do antropocentrismo contemporâneo. Percebe-se a ideia logo que é dito ser fundamental “buscar soluções integrais que considerem as interacções dos sistemas naturais entre si e com os sistemas sociais”, porque “não há duas crises separadas: uma ambiental e outra social; mas uma única e complexa crise socioambiental.” Ecologia económica, ecologia cultural, ecologia do quotidiano – todas como responsabilidade de todos, porque “somos nós os primeiros interessados em deixar um planeta habitável para a humanidade que nos vai suceder”.
No plano das propostas de linhas de acção, o Papa Francisco insiste no diálogo, passando pela política internacional, pela busca de novas políticas nacionais e locais, pela transparência nos processos de decisão, pelo encontro entre as religiões e as ciências. Nesta insistência no diálogo, há ideias que nos fazem pensar: “A política não deve submeter-se à economia, e esta não deve submeter-se aos ditames e ao paradigma eficientista da tecnocracia. Pensando no bem comum, hoje precisamos imperiosamente que a política e a economia, em diálogo, se coloquem decididamente ao serviço da vida, especialmente da vida humana.” Outra: “A maior parte dos habitantes do Planeta declara-se crente, e isto deveria levar as religiões a estabelecerem diálogo entre si, visando o cuidado da natureza, a defesa dos pobres, a construção duma trama de respeito e de fraternidade.”
O último capítulo envereda pela área da “educação e espiritualidade ecológicas”, propondo a construção de uma aliança com o ambiente, de um outro estilo de vida, de uma postura de responsabilidade ambiental, de uma necessária paz interior, de uma atenção aos outros, coordenadas indispensáveis para a felicidade na Terra. E não é sem um sentido autocrítico que, a finalizar, o Papa classifica esta sua carta como uma “longa reflexão, jubilosa e ao mesmo tempo dramática”. Um texto que gira em torno de uma ideia de liberdade e de felicidade para o ser humano e da responsabilidade que cada um tem na construção desse trajecto, que se lê como parte de uma conversa e que, pela sua actualidade e proximidade, apela aos leitores, quase se sentindo necessidade de sublinhar um e todos os parágrafos, tão incisivos eles são!

Sublinhados
Identidade – “Quem cresceu no meio de montes, quem na infância se sentava junto do riacho a beber, ou quem jogava numa praça do seu bairro, quando volta a esses lugares sente-se chamado a recuperar a sua própria identidade.”
Crueldade – “A indiferença ou a crueldade com as outras criaturas deste mundo sempre acabam de alguma forma por repercutir-se no tratamento que reservamos aos outros seres humanos.”
Limite – “Cada época tende a desenvolver uma reduzida autoconsciência dos próprios limites.”
Homem e Natureza – “Sempre se verificou a intervenção do ser humano sobre a natureza, mas durante muito tempo teve a característica de acompanhar, secundar as possibilidades oferecidas pelas próprias coisas; tratava-se de receber o que a realidade natural por si permitia, como que estendendo a mão. Mas, agora, o que interessa é extrair o máximo possível das coisas por imposição da mão humana, que tende a ignorar ou esquecer a realidade própria do que tem à sua frente. Por isso, o ser humano e as coisas deixaram de se dar amigavelmente a mão, tornando-se contendentes.”
Trabalho – “Somos chamados ao trabalho desde a nossa criação. Não se deve procurar que o progresso tecnológico substitua cada vez mais o trabalho humano: procedendo assim, a humanidade prejudicar-se-ia a si mesma. O trabalho é uma necessidade, faz parte do sentido da vida nesta terra, é caminho de maturação, desenvolvimento humano e realização pessoal.”
Ética e Técnica – “Quando a técnica ignora os grandes princípios éticos, acaba por considerar legítima qualquer prática.”
Consumo – “Quanto mais vazio está o coração da pessoa, tanto mais necessita de objectos para comprar, possuir e consumir.”
Simplicidade – “As pessoas que saboreiam e vivem melhor cada momento são aquelas que deixam de debicar aqui e ali, sempre à procura do que não têm, e experimentam o que significa dar apreço a cada pessoa e a cada coisa, aprendem a familiarizar-se com as coisas mais simples e sabem alegrar-se com elas.”

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