domingo, 2 de agosto de 2015

Urbano Tavares Rodrigues: Encontro com Vasco da Gama em "Os campos da Promessa"



Corria o ano de 1490, era a data em que se celebravam as festas do casamento do infante D. Afonso com Isabel de Castela, descendente dos Reis Católicos, evento que fazia fervilhar Évora de tanta gente e de tanta alegria. Entre os presentes constavam Vasco da Gama e um amigo, Luís de Mendonça, que tinham cavalgado desde a costa alentejana. Está o leitor perante o início da trama de Os campos da promessa, de Urbano Tavares Rodrigues (Évora: Ataegina, 1998), obra que abre com a transcrição do poema “Au seul souci de voyager”, dedicado a Vasco da Gama, de Stéphane Mallarmé (poeta que morreria no ano em que se celebrava o quarto centenário da primeira ida do Gama à Índia).
Durante a viagem, a conversa ajuda a definir o perfil de Vasco da Gama, que confidenciava ao amigo sentir-se “homem de um tempo novo”. Vindo desde Sines, terra ao pé do mar, de pescadores e de mestres de embarcação, Vasco explica: “Eu aprendi sobretudo com velhos pilotos, gente nossa, que se fez na crista das vagas e na dança das tempestades, suspensa da luz do Setestrelo, a empurrar a morte com a esperança. E sonho muito. Sonho desde sempre que vou comandar uma grande armada, naus e caravelas guiadas pelo Senhor Cristo nas rotas do Atlântico e do Índico, com peixes descomunais saltando das ondas, feras a saírem-nos ao caminho à beira das selvas, hordas de cafres, cáfilas de mouros e outras estranhas criaturas vestidas de ouro, sedas raras e pedrarias, como parece que são essas do Oriente, e a todos terei de vergar, menos com as bombardas dos meus navios do que com o poder da palavra.” A citação é longa, mas logo o leitor se convence de que o trabalho apresentado passa pelos meandros da História, de tal forma a linguagem se cruza com o pensar da época retratada, seja na ânsia de chegar ao Oriente, seja na imagem que do outro se constrói.
Decorre a viagem por longas horas e o discurso dos amigos aborda outras temáticas, como a religião ou o poder de Deus, como a figura do soberano (D. João II), sendo também interrompido pelas cenas a que assistem, outra forma de a época ganhar tonalidades e de contextualizar o tempo: o frade “rotundo, gozando, muito quieto, a presença de Deus” junto de humilde capela; os escravos que ajudavam na lavoura lá para os lados do Torrão; um encontro inesperado com um lobo atacante; as “silhuetas andrajosas de um grupo de infelizes”, leprosos que circulavam “ao Deus dará”; a paisagem de pastorícia, em que ambos ouvem as queixas de um pastor, pesaroso com “o mal da cobiça” (a quem Vasco da Gama promete que, em breve, no reino, haverá tal abundância que a todos fartará); o encarar com um louco, “homem silvestre”, que levará Mendonça a especular sobre as profundezas da loucura; as raparigas de um povoado que parecia abandonado, de tal forma os moradores estavam assustados com a ladroagem que os ameaçava; enfim, uma viagem que Mendonça resumiria no meio de uma conversa na pousada de Alcáçovas, depois de mostrar o seu ar poético num vilancete – “tudo o que vimos durante esta nossa viagem – a miséria, o roubo, a solidão, o sofrimento, a desgraça dos mais pequenos, vilões, vagabundos, doentes, leprosos, quereis que vos diga?, o mundo parece-me cruel e mal governado”.
Na cerimónia dos esponsais, será a vez de Vasco da Gama se cruzar com D. Manuel, “duque de Beja, primo do rei, e grande de Portugal”, momento de revelação, que contribui para o fechamento da narrativa – anunciando-lhe que, no seu rosto, “está escrito um grande destino” e assegurando-lhe a solidariedade (“Contai comigo, Vasco”), D. Manuel permite que o Gama fique a pensar no que lhe reserva o futuro.
E assim se faz a união da narrativa com o título: os campos do Alentejo e a promessa de D. Manuel. Uma história em que não falta a manifestação de um grande apreço pelo Alentejo (marca sempre presente na escrita de Urbano Tavares Rodrigues), uma paisagem em que decorre uma quase sinfonia de calma e de apaziguamento – “oscila, vagarosa, a linha do horizonte; sol e vento abrasam as estevas, sibilam, crepitam no mato alto; e o concerto das rolas, dos insectos, de algum grilo rente ao solo acompanha a caravana ao longo do percurso”. Uma história em que não falta uma quase declaração de amor a Évora, uma “cidade toda branca e jubilosa, sobrepujada por uma infinidade de campanários”. Uma história em que, não estando ausente o perfil da historiografia, tem também os ingredientes da criação literária, como acontece no momento de prolepse em que se anuncia o destino do noivo, a ocorrer dali a um ano – “Como que adivinha o Gama, ao vê-lo assim animoso e evanescente, que, cerca de um ano após o casamento, D. Afonso vai morrer de uma queda absurda, ao galopar de mão dada com um nobre seu amigo, D. João de Meneses, segundo uso da época, à beira do Tejo”. Com efeito, a História comprovou-o, um acidente vitimou D. Afonso em meados de 1491, quando cavalgava na zona de Santarém.
A narrativa conclui-se com a personagem Vasco da Gama a acalentar o sonho de ir até à Índia, sobretudo depois de ter recebido a promessa incentivadora de D. Manuel – “Irá surgir a minha hora? Benvinda hora.” E o futuro almirante abandona a festa, perseguindo a sua ideia, “pretextando cansaço, mas com a face banhada de esperança”, enquanto a paisagem se sintoniza com ele, pois “as laranjeiras, sob o luar, naquele largo branco de cal e absoluto, estão cobertas de ouro.” Entretanto, já Vasco da Gama tinha também a promessa da companhia do amigo poeta Luís de Mendonça, que, sofrendo a dor da morte de sua mulher, pondera seguir o herói “lá para as Índias, para o Oriente, para o desconhecido”.
Não sendo um conto extenso, Os campos da promessa foi uma forma de comemorar Vasco da Gama no ano em que se assinalava o quinto centenário da chegada dos Portugueses à Índia por mar. A história deixa um retrato de Vasco da Gama a querer integrar o futuro de Portugal, animado de um espírito de descoberta, sensível, todos ingredientes necessários à construção do herói que a História receberia no final daquela década, por incumbência de D. Manuel I (que subira ao trono em 1495) e que Camões iria glorificar literariamente três quartos de século depois.

Sublinhados
Loucura – “Será a loucura uma perda de faculdades ou uma outra forma de saber, tumulto da alma em que o mais fundo do nosso ser vem à tona?”
Dirigir – “Os homens não prestam e ao mesmo tempo são capazes de grandes feitos. Há que saber levá-los e dirigi-los com rigor, sendo preciso.” 

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